sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023


17/02/2023 - 16h53min
Fabrício Carpinejar 

Efeitos da impunidade

Pelo andar vagaroso do tribunal, dificilmente os familiares das vítimas e os sobreviventes vão receber qualquer ressarcimento ainda em vida. Já não basta perder filhos que estavam no esplendor da sua juventude dentro da ratoeira da boate Kiss, sem portas nem janelas, muito menos dignidade. A casa tinha capacidade para 690 frequentadores e contava com mais de 900 no crepitar das chamas.

Já não bastam as fartas irregularidades, que tornam o que poderia ser um acidente em assassinato em massa: uso de artefato pirotécnico num ambiente interno; espuma inflamável como revestimento; extintor de incêndio retirado da parede por não combinar com a decoração; obstáculos no acesso à única saída e atuação dos seguranças impedindo a evacuação; descumprimento de uma série de normas de emergência; obras sem perito; alvará sanitário vencido.

Já não basta a estranha retirada dos nomes do prefeito e de outras autoridades da responsabilização pelo crime. Dos 28 indiciados por envolvimento direto e indireto no incêndio — entre donos da boate, integrantes da banda, funcionários da prefeitura e até bombeiros —, apenas quatro restaram nos autos.

Já não basta o aniversário sombrio de dez anos sem julgamento apropriado dos réus. Já não bastam séries e documentários revivendo momento a momento do desespero do incêndio que culminou com 242 mortos e 636 feridos. A ausência de escrúpulos galgou mais um patamar de imoralidade no Rio Grande do Sul. Familiares das vítimas de Santa Maria sofreram uma tentativa de golpe. Roubar os enlutados é a mais vilipendiosa falta de caráter, a mais ignominiosa demonstração de crueldade no trato humano.

Urubus e corvos recuariam, teriam mais decência. Suposto representante de um escritório de advocacia telefonou para uma das sobreviventes dizendo que havia um dinheiro a receber a título de indenização do governo. Precisava saber o número do documento e de conta dela para verificar o fundo disponível.

A jovem lhe passou os dados. Horas depois, ele ligou novamente explicando que não seria possível transferir a quantia, retida pela Receita Federal por valores inadimplentes. Prontificou-se a resolver as pendências se fossem transferidos os débitos das multas em aberto por Pix.

Felizmente a sobrevivente contatou o seu próprio advogado em tempo hábil e descobriu a farsa. O mesmo assédio, também frustrado, sofreu o pai de uma das vítimas. O que me preocupa é a que ponto chegamos no imbróglio jurídico. São os efeitos nefastos da impunidade. Não há nenhuma indenização prevista, nenhuma decisão a respeito do caso. Se a justiça já tivesse sido feita, nada disso estaria acontecendo. Não teríamos ameaças de estelionato.

A anulação do júri deu espaço à ação de oportunistas, facilitou a investida de ladrões de gabinete, que se aproveitam da precariedade de informações sobre os direitos legais dos envolvidos. E não é qualquer golpista que vem atuando. Trata-se de alguém educado e bem informado das lacunas do processo. Não deve ser um miserável sem instrução, mas um almofadinha salafrário com plena consciência no exercício de fraudar pessoas em sofrimento.

O mais grave de tudo não é a mentira do aliciamento, mas a verdade que há por trás dos esquemas. Pelo andar vagaroso do tribunal, dificilmente os familiares das vítimas e os sobreviventes vão receber qualquer ressarcimento ainda em vida.

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