segunda-feira, 14 de outubro de 2024



14 de Outubro de 2024
CLÁUDIA LAITANO

Ainda aqui

Havia duas plateias na estreia de Ainda Estou Aqui no Festival de Nova York: a dos brasileiros e a do resto do mundo. Meu palpite é que cada um desses públicos assistiu a um filme diferente na última quarta-feira. Enquanto a plateia local acompanhava uma trama envolvente, com boas chances de faturar troféus em festivais e até uma indicação ao Oscar, os brasileiros assistiam ao filme nacional mais importante deste século. Nada menos.

Apostar que os aplausos mais entusiasmados em Veneza ou em Nova York vieram da plateia brasileira presente nos dois festivais não diminui em nada os méritos do filme de Walter Salles. Pelo contrário. Se os crimes cometidos contra Eunice Paiva e sua família nos comovem de forma especial é porque, para nós, o significado histórico da obra ultrapassa suas qualidades cinematográficas. E dizer isso não é dizer pouca coisa.

A história é menos conhecida do que deveria. O engenheiro Rubens Paiva (Selton Mello), ex-deputado cassado em 1964, mora em frente ao mar, no Leblon, com a mulher, Eunice (Fernanda Torres), e os cinco filhos. Não está mais envolvido com política, mas ajuda como pode os que estão exilados ou na clandestinidade por combaterem a ditadura. Sabe que corre algum risco, mas sente-se razoavelmente seguro por ser uma figura pública e por não ter qualquer tipo de conexão com a luta armada. 

No dia 20 de janeiro de 1971, seis homens invadem sua casa, e Rubens Paiva é levado para depor. A mulher e a filha de 15 anos, Eliana, também são presas. Eunice passa 12 dias na prisão sem saber por quê. O marido nunca mais volta. Anos depois, os militares que torturaram e mataram Rubens Paiva foram identificados, mas nunca responderam pelos crimes. Seu corpo nunca foi encontrado.

Esse não é o primeiro filme a expor os crimes da ditadura, mas é um dos primeiros a tocar no assunto depois dos pedidos de intervenção militar e da tentativa de golpe de 2023. O filme de Walter Salles também é um dos poucos a retratar o período não a partir da ação de quem combatia a ditadura, mas desde o ponto de vista de uma família estraçalhada pela truculência do regime militar.

Em um país que nunca soube ajustar as contas com o passado, a história está sempre correndo o risco de ser apagada - ou de se repetir. Ainda Estou Aqui é o filme brasileiro mais importante deste século porque chega aos cinemas em meio a um inacreditável surto de amnésia coletiva. O perigo ainda está aqui. 

CLÁUDIA LAITANO

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