sexta-feira, 19 de maio de 2023



19 DE MAIO DE 2023
CELSO LOUREIRO CHAVES

Desafinações

A foto de uma orquestra tocando numa praça. Não qualquer praça: a Praça da Matriz em Porto Alegre. Não qualquer orquestra: a nossa orquestra, a Ospa. A foto de Leandro Rodrigues, aqui em ZH, lembra tantas ocasiões em que a Ospa, cumprindo com sua função social, tocou ao ar livre para quem quisesse ver e ouvir. Principalmente em tempos de Natal tem sido algo recorrente, isso de a orquestra tocar um Bolero de Ravel ou uma Nona Sinfonia de Beethoven para abraçar - como sugere o poema cantado na sinfonia - a sua comunidade.

Mas, segundo a jornalista Rosane de Oliveira, a ocasião da foto é de reivindicação, não de celebração. A orquestra busca encaminhamento urgente para um projeto que reajusta a verba para compra e manutenção de instrumentos e para a aquisição de indumentária, coisas do dia a dia, tremendamente indispensáveis para a vida de um grupo musical. Ao que parece, há um curto-circuito entre governo e orquestra. Por isso o concerto em praça pública e dê-lhe tocar para que a música entre pelas janelas dos palácios.

Acabamos de sair de um governo federal que teve a arte e a cultura como alguns dos seus inimigos preferidos, seu foco de raiva à custa de fake news e incompetência. Não precisamos reeditar em escala local as más práticas federais, embora haja sinais de descaso aqui e ali. Por ironia, a pendenga de agora acontece justamente quando a orquestra está numa das suas temporadas mais consistentes: bons programas, músicos excelentes, casas cheias.

Não vale a pena repisar aqui o proverbial "minha cidade tem uma orquestra etc. etc." tantas vezes citado. Ultrapassamos essa fase. Mas vale lembrar que a Ospa tem mais de 70 anos de atividades ininterruptas e faz parte da vida da cidade como os parques, os museus, os teatros, as escolas e, também, os hospitais. Tudo é importante, tudo configura quem somos e quem podemos ser, o que já foi feito e o que ainda há a fazer. Por isso, não há justificativa para desafinações na burocracia das relações.

Pois que também se aplicam às orquestras aquilo que o filósofo Nuccio Ordine escreveu no seu livro A Utilidade do Inútil, que serviu de mote para o meu Concerto para violino e orquestra: "a vida de um museu ou de uma escavação arqueológica, assim como a vida de um arquivo ou de uma biblioteca, é um tesouro que a coletividade deve preservar ciosamente, a todo custo". Se é assim também com as orquestras, então que as janelas e os que habitam atrás delas ouçam a música que vem da praça.

CELSO LOUREIRO CHAVES

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