quinta-feira, 8 de setembro de 2016



08 de setembro de 2016 | N° 18629 
L.F. VERISSIMO

In Aleppo

Aleppo, a maior cidade da Síria, tem estado no noticiário internacional como um eixo do carrossel de terror que roda na região, com turcos atacando curdos, tropas sírias e o Estado Islâmico, este atacando os turcos, os curdos e tropas sírias, tropas sírias atacando os turcos, os curdos e o Estado Islâmico e ninguém se entendendo. Leitores de Shakespeare se lembrarão de que na peça Otelo, depois de matar Desdêmona, o mouro pede para lembrarem que em Aleppo, um dia (“that in Aleppo once”), um ser maligno (ele mesmo) “que amou não sabiamente mas demais”, pegou pelo pescoço o “cão circuncidado” e o golpeou, “assim” – e Otelo se mata.

Vladimir Nabokov, cuja obra é polvilhada de citações de Shakespeare, escancaradas ou sutis, deu o título “In Aleppo once” a um conto sobre ciúme e desentendimentos, como a tragédia de Otelo, convencido por Iago de que a doce e fiel Desdêmona o trai. Até hoje se discute a motivação de Iago para montar a intriga mortal. Apenas uma maldade gratuita de um dos piores caracteres de toda a literatura, ciúme da virtuosa Desdêmona ou – uma especulação moderna – amor homossexual por Otelo?

Nabokov se deliciou ao descobrir que Shakespeare, que também era ator, tinha feito o papel do fantasma do pai de Hamlet no palco do teatro Globe. O papel é pequeno mas essencial na trama, sem ele e sem seu clamor por vingança não haveria a peça. E é o fantasma que se despede de Hamlet antes de desaparecer na bruma, dizendo “Adieu, adieu, adieu. Remember me, remember me...” Poderia ser o autor falando pela boca do ator, pedindo para se lembrarem dele.

E Shakespeare não foi esquecido nos 400 anos que nos separam da primeira encenação de Hamlet. Volta e meia, surge uma adaptação nova de uma peça dele. Grandes escritores se renderam ao seu sortilégio – Nabokov, talvez, mais do que todos. James Joyce dedica um capítulo inteiro do seu Ulysses a Shakespeare e seu legado literário. “Remember me, remember me.” Em Aleppo, há 400 anos, foi a mesma súplica de um triste mouro, que amou não sabiamente, mas demais.