domingo, 25 de setembro de 2016


YOKO OGAWA - tradução RITA KOHL
25/09/2016  02h05

Leia trecho inédito de romance de Yoko Ogawa


SOBRE O TEXTO O trecho abaixo abre o terceiro capítulo do romance "O Museu do Silêncio", da japonesa Yoko Ogawa, que a Estação Liberdade lança no começo de outubro. O enredo gira em torno da contratação de um museólogo por uma senhora que deseja organizar uma coleção de peças que sintetizam a existência de seus proprietários, todos mortos.

A sala que ela chamava de acervo era a antiga lavanderia, na extremidade oeste do porão. No instante em que a porta se abriu, senti o cheiro de tecido mofado, ou de plantas murchas, enfim, o cheiro que a matéria exala quando apodrece.

Era um espaço amplo, mas sujo e muito bagunçado. Coisas diversas (talvez as peças da coleção?) estavam espalhadas aqui e ali, sobre armários, cômodas e mesas, dispostas desordenadamente. Nada parecia estar no lugar certo. Mas o que estava me incomodando não era a situação caótica da sala, era outra coisa. Demorei algum tempo para compreender o quê.

Andamos, os três, até o centro da sala. Era preciso prestar atenção a cada passo para não esbarrar em nada. Eu não queria nem imaginar como a velha esbravejaria se por acaso eu derrubasse ou quebrasse alguma coisa. O chão tinha um design moderno, com ladrilhos em padrão xadrez. Graças às janelas estreitas no alto das paredes, pelas quais se via o céu e as plantas do jardim, a iluminação era boa, apesar de estarmos no subsolo. Havia varais pendurados no teto, ferros de passar e antigas máquinas de torcer roupa caídos pela sala, vestígios do tempo em que ali funcionava uma lavanderia.

As salas de acervo, de qualquer natureza, costumavam ser lugares familiares para mim. Eu gostava de passar o tempo encarando os arquivos, fechado naquele cômodo absolutamente silencioso onde os visitantes não podiam entrar. Mas aquela era diferente de qualquer sala de acervo que eu conhecesse. Era como se cada objeto se impusesse livremente, segundo seus próprios caprichos, criando uma dissonância insuportável. Mesmo em depósitos muito desorganizados sempre paira no ar um senso de solidariedade entre todas as peças reunidas por um mesmo museu. Mas ali não havia nenhum vínculo, nenhuma união. Elas não tinham consideração suficiente nem sequer para voltar o olhar para os seus companheiros. Isso me deixava aflito.

Um carretel, um dente de ouro, luvas, um pincel, botas de alpinismo, um batedor de ovos, gesso ortopédico, um berço... Experimentei olhar com cuidado para cada uma das coisas próximas a mim, mas de nada adiantou. Só fiquei mais desorientado.

– São objetos de recordação dos mortos –disse a velha. – Todos deixados pelas pessoas da vila.

Sua voz ecoou muito mais próxima do que na biblioteca.

– Quero que você faça um museu para expor e conservar isso tudo.

Nesse momento finalmente percebi o motivo do meu desconforto. A velha não estava de chapéu como de costume. Por entre o cabelo branco e ralo que ainda lhe restava, espiavam duas orelhas minúsculas, pequenas demais mesmo levando-se em consideração sua estatura. Eram como duas folhas secas amarrotadas presas às laterais da cabeça. Tinham perdido completamente a forma de orelhas, eram apenas cicatrizes ao redor dos buracos dos ouvidos.

– Nossa, são muitos... –comentei devagar, tentando desviar a atenção das orelhas.

– Comecei a reuni-los no outono dos meus onze anos. Essa coleção tem uma história longa demais para ser narrada. E ela ainda continua, daqui pra frente.

A menina sustentava a velha com segurança, com o braço direito ao redor do seu ombro e a mão esquerda apoiada no quadril. Parecia já saber perfeitamente quanta força era necessária, e onde aplicá-la. As duas estavam unidas como se fossem parte uma da outra.

– Sempre que alguém da vila morre, recolho um único objeto relacionado àquela pessoa. É uma vila pequena, como você sabe, então não é como se morresse alguém todo dia. Mas não é fácil reunir esses objetos, algo que descobri na prática. Talvez fosse pesado demais para uma criança de onze anos. Mas, mesmo assim, consegui fazê-lo por muitas décadas. A minha maior dificuldade é porque não me contento com uma recordação qualquer. Nunca dei um jeitinho pegando qualquer coisa fácil, uma roupa que a pessoa vestiu uma ou duas vezes, uma joia que viveu fechada no armário, uns óculos feitos três dias antes de morrer. O que eu quero são coisas que guardam, da forma mais vívida e mais fiel possível, a prova de que aqueles corpos realmente existiram, entende? Algo sem o que os anos acumulados ao longo da vida desmoronariam desde a base, algo que possa eternamente impedir que a morte seja completa. Não são lembrancinhas sentimentais, não tem nada a ver com isso. E claro que o valor financeiro também está fora de questão.

A velha engoliu a saliva e afastou, irritada, o cabelo que caía sobre a testa. Pela janela, vi um passarinho cruzar o céu alto. As recordações continuavam todas quietas ao nosso redor.

– Esta aqui é um bom exemplo. A um sinal de seus olhos, a menina estendeu a mão, pegou um único objeto em meio à bagunça e me mostrou. – O que é isso?

Era apenas um anel, simples demais para um acessório, frágil demais para ser uma peça de máquina.

– Há mais ou menos cinquenta anos uma prostituta de meia-idade foi assassinada em um hotel da vila. Além de ter sido esfaqueada, seus mamilos foram cortados e levados embora. Foi o assassinato mais sórdido da história da vila e, desde então, não houve mais nenhum caso de homicídio. Por causa da sua profissão, não apareceu nenhum parente, e eu fui a única pessoa que foi à sua cremação. Eu disse que era a sua única amiga e me deixaram participar. Claro que isso era só uma mentira para conseguir algum objeto de recordação. Depois que ela foi queimada, encontrei isso aí em meio às cinzas. Quando peguei, ainda estava quente, como se guardasse o calor do seu corpo. Decidi que essa seria a sua recordação. É um DIU1, anticoncepcional. Bom, o próximo...

1. Nota da tradutora: Embora atualmente o DIU (dispositivo intrauterino) apresente a forma de T, os primeiros modelos tinham forma de anel.

YOKO OGAWA, 54, escritora japonesa, é autora de "Hotel Íris" (Leya). - RITA KOHL, 32, é tradutora e intérprete do japonês.