quinta-feira, 29 de setembro de 2016




29 de setembro de 2016 | N° 18647 
DAVID COIMBRA

“Eles não eram ninguém no ano mil”

Terei uma agenda. Está decidido. Você dirá: “Mas outubro já está ali. Agenda, a esta altura do ano, é desperdício”. Não importa, o fato é que necessito desesperadamente de agenda. Terei uma agenda.

Só com uma agenda conseguirei dar conta de todos os compromissos. Uma agenda organiza a vida da pessoa. A agenda, não por acaso, é substantivo feminino. Não existe “o agendo”. Porque a agenda é como uma mulher: está sempre dizendo a você o que fazer. A diferença é que com a agenda você não se irrita. Se você se incomodar com ela, você a coloca na gaveta e vai ver o jogo com os amigos.

Mesmo assim, você tem compromisso com a agenda. O que está escrito lá, você faz. Ou tenta fazer.

E não me venha com agendas eletrônicas, aplicativos do celular, tabela Excel. Quero uma agenda de verdade, gordinha, com capa de couro.

Tive agendas assim, admito. Começava a anotar meus compromissos em janeiro e no meio do mês já estava usando as páginas para escrever outras coisas e acabava me esquecendo de consultá-la todas as manhãs e logo a agenda se perdia entre blocos de reportagem, revistas lidas e livros para ler. Algumas sumiam para sempre.

Mas, agora há pouco, quando estive no Brasil, fui almoçar com a minha mãe, abri um armário para procurar algo e encontrei uma delas, uma velha agenda. Não sei como foi parar lá. Era do começo dos anos 1990. Comecei a folheá-la. Seguindo o destino de todas as agendas que tive, naquela estavam registrados os parcos lembretes para janeiro e, no resto, anotações esparsas, rabiscos sem sentido e até um jogo da forca que ganhei colocando a palavra “mnemônico”.

Nada digno de despertar nostalgia. Porém, numa folha exatamente de fins de setembro, como hoje, anotei a frase que tantos anos depois me fez parar para pensar. Era a fala de um dos personagens de Em busca do tempo perdido, de Proust. O sujeito era um esnobe e, para demonstrar seu desprezo por certa família de Paris, disse:

– Eles não eram ninguém no ano mil.

Foi o que anotei. “Eles não eram ninguém no ano mil”.

Que sentença espetacular. E que espetacular seria poder dizer isso, penso eu, daqui da minha reles condição plebeia do subúrbio porto-alegrense.

Por que escrevi essa frase naquela antiga agenda? Não havia nada mais que me indicasse a razão, mas consegui lembrar. Estava dizendo para mim mesmo que tinha de completar a leitura de Em busca do tempo perdido. São sete volumes, os quatro primeiros traduzidos por Mario Quintana. Não me assusto com livro grande, já li maiores, mas esse, confesso, esse larguei antes que Quintana passasse a tradução para Drummond.

Sei de todos os méritos do romance, e os reconheço, mas, depois de centenas de páginas de lenta digressão, me deu um troço, uma ânsia de ação. Tive de ver um filme do Stallone.

Ao escrever a frase na agenda, prometi que voltaria a Proust, porque sei que não serei um homem completo enquanto não concluir a leitura de Em busca do tempo perdido.

Passados todos esses anos, aquela agenda do passado gritou que ainda não resolvi o problema, ainda não corrigi a falha: não li todo o Proust. É uma parte de mim que falta e que mostra outras por completar, mostra tudo o que preciso fazer: os e-mails sem resposta, os filmes que não vi, os telefonemas que não dei, os textos que hei de escrever e até o cabelo que clama por um corte. Terrível, sou todo faltante. Por quê? Porque não tenho agenda.

Está decidido: terei uma agenda.