terça-feira, 23 de junho de 2020


23 DE JUNHO DE 2020
NÍLSON SOUZA

Sorriso nos olhos


A humanidade já usou máscaras como agora. Foi em meio à chamada gripe espanhola, que durou três anos, infectou 500 milhões de pessoas e provocou a morte de uma parcela da população mundial estimada entre 17 milhões e 50 milhões de indivíduos. Faz um século, um átimo para o planeta, mas quase uma eternidade para a frágil memória humana. Praticamente não há mais testemunhas oculares da história, pois as pessoas que já viviam em 1919 - entre as quais minha tia Izabel, de 101 anos - não podem lembrar porque eram muito crianças. Mas os jornais e os historiadores da época registraram bem a pandemia e seus efeitos colaterais, inclusive os comportamentais. Basta ler a respeito para se constatar que, como hoje, muita gente também se posicionou contra as medidas sanitárias determinadas pelas autoridades de então, especialmente o isolamento social e o uso compulsório da máscara protetora.

Nos Estados Unidos, onde o surto que se seguiu à Primeira Guerra deixou um saldo de 675 mil mortes, surgiu até uma Liga Antimáscara na cidade de San Francisco, formada por pessoas que questionavam o uso do equipamento sob a alegação de que incomodava e não estava impedindo a propagação da doença. Faziam parte do movimento empresários, comerciantes e até médicos, todos inconformados com a obrigatoriedade da proteção. Foi tal a pressão, que o prefeito da cidade acabou revogando a exigência - com resultados trágicos, segundo os registros. Já em outras localidades, o uso da máscara foi associado ao sentimento de patriotismo potencializado pelo recente conflito bélico - o que ajudou a salvar vidas.

Cento e poucos anos depois, numa época de acesso fácil ao conhecimento e à ciência, o filme incrivelmente se repete. Há visível e crescente resistência à quarentena, às restrições sociais, à interrupção de atividades e ao uso da incômoda proteção. Também detesto ter que sair por aí com um bornal enfiado no queixo, como brincou minha mãe ao me ver com a máscara preta da nossa Associação Riograndense de Imprensa. Mas é o mínimo que posso fazer para respeitar os outros e para continuar acreditando que esse tormento invisível - como aconteceu com a gripe espanhola - também acabará arrefecendo até desaparecer por completo.

Outro dia, minha esperança foi reforçada pelo entusiasmo de um gerente de loja que preparava o seu estabelecimento para uma possível reabertura, mesmo sem saber quando ocorreria a liberação. O homem adquiriu máscaras para os seus colaboradores e mandou um aviso aos clientes:

- Nossas vendedoras estarão esperando por vocês com um sorriso nos olhos. São mesmo tempos complexos: enquanto alguns fecham os olhos para a realidade, outros os utilizam para sorrir.

NÍLSON SOUZA

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