terça-feira, 16 de junho de 2020


16 DE JUNHO DE 2020
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Chão da memória


"As famílias que formaram o cafezal do Jabaquara eram o Marciano Casa Nova, mulato, antigo escravo; os Mazola, italianos da alta Itália, ótimos trabalhadores; o Zambini, e as outras duas famílias não me lembro os nomes".

Esta cena foi vista por Brazília Oliveira de Lacerda, nascida em 1888, neta, bisneta e nora de nobres do tempo do império brasileiro, gente do café paulista. Quando faleceu, descobriu-se que tinha escrito memórias, como a cena acima, na fazenda Paraízo, em que ela viveu. Agora saíram em livro, Dias Ensolados no Paraízo, pela Chão Editora, de São Paulo, especializada em livros testemunhais do passado brasileiro.

Escravos libertados convivendo com colonos europeus formam uma eloquente cena distante para nós e insinuam perguntas que duram até o presente: o que teria sido do Brasil se aos libertados se tivesse proporcionado um pedaço de terra e condições para produzir, além de escola para as crianças?

E o que dizer da próxima cena? Ela descreve aspectos de uma festa de São João também em fazenda de café, em SP, em outro livro da mesma editora, Páginas de Recordações, de Floriza Barboza Ferraz, que nasceu em 1874 e aos setenta anos também escreveu suas lembranças.

"Era a festa de nossos sonhos! E os escravos também sonhavam com esse dia. Era a única oportunidade que tinham de se chegarem despreocupados, livres e alegres à casa do seu ?sinhô?, como diziam (...). Era o único dia que pousavam fora de suas senzalas, que tinham a ilusão de liberdade. (...) As suas cantorias e danças eram muito parecidas com as dos índios como se vê hoje nos cinemas".

Cotidiano do tempo da escravidão, a lembrar um costume festeiro que hoje mesmo estaríamos preparando, não fosse a pandemia. Cena de pessoas de mesma carne e mesmos ossos, mas muito diferentes quanto a seu estatuto civil, desejando a mesma coisa, alegria renovada.

O trabalho editorial da Chão Editora tem enormes méritos e grande qualidade. Dar a conhecer o passado em sua carnadura cotidiana, que nos repõe o sentido da vida humana, a partir de ângulo crítico, isso é o caminho democrático e iluminista a ser trilhado, para fazer frente à brutalidade do racismo e da exclusão social que ainda hoje vivem, atestando um de nossos muitos fracassos como país.

LUÍS AUGUSTO FISCHER

Nenhum comentário:

Postar um comentário