sexta-feira, 19 de junho de 2020


19 DE JUNHO DE 2020
O PRAZER DAS PALAVRAS

Fômites


O fenômeno é conhecido por todos: um vocábulo que estava bem quietinho no seu canto, democraticamente listado entre os milhares de palavras que habitam o dicionário, subitamente vem para a luz dos holofotes, cai na boca do povo e se torna uma das celebridades do momento. Foi o que aconteceu em março, quando a OMS declarou oficialmente que a covid-19, até então tratada como epidêmica, passava à condição de pandêmica: só então o falante comum se deu conta de que existia uma diferença significativa nos prefixos epi- e pan- e que os dois vocábulos não eram sinônimos, como os médicos e epidemiologistas sempre souberam. Como se diz, em questões de linguagem a realidade é a melhor professora - e das antigas, porque com ela não tem nhenhenhém nem corê-corê.

Pois nesta semana, lendo a milésima matéria sobre esta trágica pandemia, uma palavra atraiu minha atenção por sua desagradável ressonância (ao menos para meus ouvidos): falo de fômites, uma robusta proparoxítona que certamente integra o vocabulário dos especialistas, mas que até então era absolutamente nova para mim. Palavra nova! Maravilha! Os leitores me entendem: um biólogo que encontrasse uma nova espécie de caranguejo do mangue não ficaria mais contente do que eu...

Minha edição do Houaiss não traz o termo, mas numa rápida busca na internet encontrei o seu significado e muito mais, como vão ver. Os fômites designam qualquer "objeto inanimado ou substância capaz de absorver, reter e transportar organismos contagiantes ou infecciosos de um indivíduo a outro". É por isso que, muito antes da Ciência descobrir a existência e a ação dos vírus e das bactérias, intuitivamente se queimavam os pertences e as roupas dos mortos nas epidemias. Ora, para nós, que vivemos hoje toureando o maldito vírus, isso inclui quase tudo: o botão do elevador, a moeda do troco, a maçaneta da porta, o controle remoto da TV, o corrimão da escada, o interruptor da luz ou a bomba do chimarrão. O danado do bicho, como se vê, pode estar à espreita em qualquer lugar.

Depois dessa amarga conclusão, porém, até mesmo essa palavra feiosa e sinistra torna-se interessante com seu surpreendente parentesco. Quem a divulgou, parece, foi o Inglês, mas quem primeiro a empregou foi um estudioso italiano, Girolamo Fracastoro, num tratado médico sobre o contágio publicado em 1546. Ele foi buscá- la, é claro, numa das línguas-mães do Ocidente: no Latim, fomes, plural fomites, designava as partículas que incendeiam com as centelhas provocadas pelo ferro ao bater na pedra, e o seu emprego médico claramente comparava a disseminação da doença com fagulhas que podem facilmente provocar um incêndio.

Exatamente por isso a Botânica, uma das ciências que mais emprega o Latim, denominou de Fomes fomentarius um cogumelo que os povos primitivos já utilizavam para fazer fogo ou para transportá-lo, já que pode queimar por horas a fio. Em bom vernáculo, o fomes latino seria a "isca de lume": no passado, o modo habitual de acender o fogo era bater com um pedaço de ferro numa pedra para, com as fagulhas obtidas, produzir uma pequena brasa na isca, que podia ser um pedaço de pano queimado, um chumaço de algodão ou fibras vegetais bem secas. 

Não é por acaso, portanto, que o conjunto do ferro, da pedra e da isca seja chamado de isqueiro, e que aqui o Fomes fomentarius ganhe o nome popular de fungo-pavio, e que todos esses materiais inflamáveis usados para fazer fogo sejam, no Inglês, chamados de tinder, nome que serviu para batizar um aplicativo de relacionamentos "quentes" (ao menos na expectativa de seus usuários) - e assim, esquecendo um pouco os fômites, entramos por uma porta e saímos alegremente pela outra, e quem quiser que conte outra.

CLÁUDIO MORENO, ESCRITOR E PROFESSOR, ESCREVE QUINZENALMENTE ÀS QUINTAS-FEIRAS

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