sábado, 11 de junho de 2022


11 DE JUNHO DE 2022
ELIANE MARQUES

ELIANE MARQUES EXU, O HERÓI DENEGADO

Édipo, de Sófocles, e Hamlet, de Shakespeare, os dois heróis de Freud, representam uma antiguidade selvagem e um renascimento selvagem, nessa ordem. Eles dizem do que vacila diante da lei simbólica. Assim funcionam como o paradigma do herói na medida em que encarnam na criação estética a problemática universal da ficção-realidade expressa na relação incesto-homicídio. Édipo e Hamlet falam de dimensões diversas da proibição, mas ambos o fazem mediante a posta em cena dos efeitos da transgressão. Quando me refiro à "problemática universal", prendo-me à distinção feita por Muniz Sodré entre o universal concreto e o universal abstrato (diferença) - elaboração da metafísica europeia que, no dizer do escritor, tem lastreado o pensamento da alteridade e da opressão.

O desejo incestuoso do qual padecem Édipo e Hamlet corresponde à indiferenciação na onipotência familiar e estatal. Fundem-se os lugares simbólicos de pai, mãe, filha, tio, chefe da nação. A proibição transgredida de que se trata não é um dado biogenético equivocadamente natural, se não construção da linguagem, o que implica seu reconhecimento como enigma. Porém, plagiando Ricardo Piglia, a confusão não é do enigma, mas de quem consulta o oráculo.

Se Freud elegeu seus heróis da Antiguidade e do Renascimento naquilo que tinham de supostamente universal nas suas relações com a lei, deixou ao nosso encargo a escolha do herói da Modernidade. Cabe-nos a decisão teórica e política de indicarmos o nome que diz da forma estética das relações sociais com a lei, sempre sintomáticas, no período em que vivemos a singularidade amefricana ou a concretude do universal nesta Améfrica Ladina.

Não há modernidade ou pós-modernidade sem a cultura da plantation sustentada pela escravidão racial. As diásporas atlânticas desafiaram o conceito de casa, de homem, de mulher, de trabalho, de divindade, desafiaram o conceito de literatura, de liberdade e de boa vida, desafiaram o conceito de parentesco, fundando uma concepção de identidade narrativa, cambiante, assentada num processo histórico e político e não em supostos essencialismos sanguíneos.

Doravante, dizer vínculo de sangue é modo de dizer vínculo de filiação. O sangue adquire apenas um valor metafórico. Se não for simbolicamente articulado, não dirá nada. Portanto, o vínculo de filiação substitui um vínculo supostamente biológico. Muito antes dos testes genéticos, a tradição jurídica já estabelecia os vínculos de filiação pela tríade nome, trato e fama.

Se Édipo e Hamlet estão ocupados com seus vínculos sanguíneos, se estão ocupados em saber quem são seus verdadeiros pais e mães e se dormiram ou querem dormir com suas mães e matar o pai, se suas vidas acabam numa morte trágica, Exu já nasce da morte, já nasce da ineficácia do homicídio e da eficácia da palavra, posta no lugar do crime, que impediu o incesto com a mãe. Esse orixá, herói denegado da modernidade, simboliza o vínculo de filiação a que estamos submetidos.

ELIANE MARQUES

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