sexta-feira, 24 de junho de 2022


24 DE JUNHO DE 2022
EDUARDO BUENO

Amazonas

Já começou com fake news. Em agosto de 1542, ao chegar numa ilhota no Caribe, após uma viagem épica de mais de 7 mil quilômetros por aquele que logo se revelaria o maior rio do planeta, o frei dominicano Gaspar de Carvajal empunhou a pena e, apesar do olho vazado por uma flechada, redigiu o relato da inacreditável jornada fluvial que fizera sob o comando de Francisco de Orellana, desde os Andes até o Oceano Atlântico. O ponto alto da narrativa era a descrição do combate feroz que os espanhóis teriam travado contra "mulheres mui alvas e altas, com longos cabelos trançados, robustas e nuas em pelo, armadas com arcos e flechas, fazendo tanta guerra como 10 índios homens". Por causa delas, Carvajal batizou o imenso curso d´água com o nome que carrega até hoje: rio das Amazonas.

Antigo mito grego, as amazonas eram mulheres guerreiras que cauterizavam um seio para melhor manejar o arco e flecha. Embora Carvajal não tenha dito que as combatentes que atacaram os espanhóis fizessem o mesmo, seu relato foi menosprezado na Espanha. Mais do que isso: o frei foi desmentido por cronistas do nível de Lope de Gomara e Gonzalo de Oviedo. Dois séculos depois, cientistas de peso, como Humboldt e La Condamine, também desconsideraram a narrativa de Carvajal. Até porque nenhum dos viajantes que, na sequência dele, navegaram pelo imenso rio - por mais delirantes que fossem (como de fato eram Aguirre, Walter Raleigh e Juan Martinez) - voltou a ver ou mencionar as tais guerreiras.

Mas guerreiros e guerreiras abundavam às margens do Amazonas e relatos fidedignos, como os do padre Vieira e de Pedro Teixeira (que em 1638 navegou o rio da foz à nascente, na contracorrente - e só por isso a região, que era da Espanha, passou a pertencer ao Brasil), descrevem vastas populações ribeirinhas vivendo em enormes aldeias. Algumas antigas e misteriosas, como as que deram origem à cultura marajoara.

Por isso e muito mais, é revoltante que uma bobagem sem par como a tal Ratanaba, suposta cidade de 450 milhões de anos (sic), ganhe destaque nas redes sociais, em especial no infame TikTok. E que as "revelações" sobre essa "primeira capital do mundo" tenham surgido justo na semana em que o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram assassinados num dos recantos mais recônditos da Amazônia real. Por isso, dá engulhos saber que o secretário de Cultura do governo que não protege o Vale do Javari insinue que vale investigar a existência de Ratanaba. Que naba!

"A Amazônia é nossa", disse o presidente do Brasil ao responder pergunta de Dom Phillips. Sim, dele e dos garimpeiros, madeireiros e pescadores ilegais que ele estimula e apoia. Pena que as amazonas de Carvajal fossem fake: suas flechas bem poderiam ser úteis na luta pela preservação da Amazônia.

EDUARDO BUENO

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