sábado, 18 de junho de 2022


18 DE JUNHO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Supostamente

Sinal dos tempos. Porque tudo pode virar um processo ou, no mínimo, uma bela incomodação, a palavra que mais se ouve, fala e lê nos noticiários é su-pos-ta-men-te.

O suspeito, supostamente, enforcou a namorada diante das câmeras de segurança. Se foi registrado pelas câmeras de segurança, precisaria mesmo do supostamente? Ou então: o homem teria, supostamente, atraído as crianças para sua casa e abusado delas, conforme os menores, que não se conheciam, contaram para a polícia.

Se os menores não se conheciam e deram todos a mesma versão, por que o abuso seria apenas suposto?

Não se pode acusar sem provas e tal, ainda que essa máxima não valha para todos os que são acusados. Mas se alguém viu, se a câmera gravou e se os depoimentos corroboraram, o supostamente sempre parece favorecer mais o agente da ruindade que a vítima.

O motorista fugiu após, supostamente, entrar na contramão e atingir o outro veículo. O diretor, supostamente, teria desviado milhões em contratos da empresa. A deputada, supostamente, caluniou a colega em comentários feitos no plenário.

A influencer, supostamente, cometeu crime de racismo em seus posts no Instagram.

Todos esses su-pos-ta-men-te saíram de notícias publicadas na imprensa e na internet. Os textos completos não deixavam dúvida: tinha treta. Mas o supostamente estava lá, como a proteger quem publicou.

Talvez a gente esteja exagerando na cautela. Ou não. 

No dia 1º de junho saiu uma sentença kafkaniana contra a escritora Saíle Bárbara Barreto, autora do livro Causos da Comarca de São Barnabé, que trata de uma fictícia comarca catarinense em que a Justiça não é tratada com o devido respeito, para se dizer o mínimo. Acontece que um juiz se reconheceu no principal personagem do livro, que não é lá nenhum modelo de lisura, além de ser de má bebida, impotente, misógino y otras cositas más. Caiu aqui: por que, diabos, alguém se reconhece em um personagem assim?

O tal magistrado processou a Saíle e pleiteou, além da retirada do livro de circulação, uma indenização de R$ 100 mil. O juiz responsável pela sentença reconheceu que o autor do processo não foi identificado pela escritora: "Perceba-se que as postagens difamatórias contra sujeito anônimo, indeterminado e não identificável não podem ser tomadas como capazes de macular a honra de ninguém publicamente, sobretudo porque não se mostra possível a individualização do destinatário das ofensas." Apesar disso, condenou Saíle a pagar R$ 50 mil. Cabe recurso e ela vai recorrer.

Até a entrega da coluna, os desaparecimentos do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira ainda mereciam um "suposto assassinato" nas notícias de jornal. Talvez, a essa altura, todos já saibam, oficialmente, o que aconteceu. Era questão de tempo para que a invasão da Amazônia por grileiros, garimpeiros, madeireiros, pescadores ilegais e narcotraficantes rompesse os limites da floresta e horrorizasse o mundo, em uma destruição que a gente vem assistindo de mãos amarradas, junto com o desmantelamento dos órgãos de proteção aos indígenas e à natureza.

Foi um crime arquitetado ao longo dos últimos anos. E não, não é supostamente.

CLAUDIA TAJES

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