sábado, 16 de dezembro de 2017


16 DE DEZEMBRO DE 2017
ARTIGO

O CAIS QUE CAI


Amarca profunda da nossa indolente decadência é o abandonado cais do nosso Alegre Porto. Estuário de outros cinco rios, o Guaíba desemboca na lagoa imensa que chega ao mar em Rio Grande, mas já não vemos o que enxergávamos antes: ali estão vias naturais que - fora a Amazônia - só nós possuímos no Brasil.

Quem queira ver a cicatriz da decadência, faça o que eu fiz dias atrás: olhe a Capital do meio do rio, num barco. Os belos armazéns do antigo cais vão da Rodoviária ao Gasômetro. Amplos e funcionais, são mais de 70 e por ali o Rio Grande exportava o que produzia. Ou recebia o que nossa pujança fazia comprar. Alguns guindastes continuam lá, símbolos da velha riqueza: avançadíssimos à época, vieram da antiga Alemanha Oriental em troca de produtos agropastoris.

A negociação, iniciada no governo Brizola, foi concluída na gestão de Ildo Meneghetti, anos 1960, quando ainda havia consciência de que o rio era porta aberta ao mundo, não úmido estorvo.

Todo traste velho que estorva tem um destino: vai fora ou o embelezamos, mudando a cara para esquecer o que foi. É o que buscam fazer. O abandonado Cais Mauá será "revitalizado", mas não terá vida. Fruto da negligente preguiça mental dominante, tudo aquilo a que se destina será alterado. As funções para que foi construído serão amputadas, não revitalizadas.

O cais já não vai gerar riqueza. Será centro de consumo (não de produção) para destruir o comércio tradicional do Centro. Já "revitalizaram" a área enchendo a Rua da Praia e a Borges de camelôs de "made in China" contrabandeados.

Terá apenas rosto mais atraente do que a macega que brota entre as pedras de granito polidas com inigualável arte há um século, e que fazem a contenção das águas do rio. O abandono dos últimos 20 anos (quando o precário Cais Navegantes passou a operar os poucos navios que aqui chegam) leva a que, em boa-fé, muitos aplaudam a "revitalização" que não vai revitalizar.

Por que não podemos ser como antes? Pelos grupos de pressão? O lobby rodoviário (de grandes empresas de obras, tipo Odebrecht, até montadoras automotrizes ou transportadoras de carga e passageiros) já terminou com as ferrovias. O que resta na área marítima e fluvial estará na mira?

Ocultos no capim, até os trilhos de trem persistem no cais. Mas não nos deixam ser como os Estados Unidos, a Rússia e a Europa inteira, ou a China, onde as vias férreas e fluviais dominam os longos trajetos. E o cais que cai cairá ainda mais!



Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES