sábado, 30 de dezembro de 2017


30 DE DEZEMBRO DE 2017
J.J. CAMRGO

MODELOS QUE IRRIGAM A ESPERANÇA

É regra geral que o principal subproduto do sofrimento seja a revolta, coerentemente mais intensa durante o transe doloroso, mas que pode se perpetuar no espírito de quem sofre como uma amargura residual, persistente. Para desespero dos terapeutas da alma e entusiasmo dos fabricantes de antidepressivos. A associação desse sentimento com o desenvolvimento de culpa pode produzir sequelas emocionais insuperáveis. 

Com graus variáveis de sucesso, as vítimas de tragédias pessoais podem ser recuperadas para a vida útil e tidas com reequilibradas a julgar pelo retorno ao trabalho, a leveza do sono ou a espontaneidade do sorriso. Outros seguem remoendo a dor e subjugados por ela pela vida afora, sem trégua e sem remissão. Esses tipos, em geral, emagrecem, porque não conseguem dar uma pausa no culto à adversidade, nem para um prazer tão primitivo quanto o de comer.

Boris Cyrulnik era judeu, nascido na França, passou parte de sua infância nos campos de concentração da Alemanha de Adolf Hitler. Presenciou a morte de seus pais, irmãos, avós e amigos, e foi o único sobrevivente do grupo. Resgatado desse circo de horrores, perambulou por vários lares adotivos, carregando apenas a vida e a esperança.

Permaneceu analfabeto até a adolescência, mas conseguiu se formar em medicina, na qual elegeu a psiquiatria e desenvolveu a teoria da resiliência, baseado num conceito da física que a define como a propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer um choque ou deformação, ou na linguagem psiquiátrica, a capacidade de retomar o desenvolvimento depois de uma agressão traumática. 

Ou seja, dar uma utilidade ao sofrimento. No mundo contemporâneo deformado pelo egocentrismo, sempre me encantou a existência desses tipos que, marcados pela tragédia pessoal, encontraram forças não apenas para submergir, mas secar as lágrimas e tratar de mobilizar a sociedade com a única intenção de poupar famílias desconhecidas da mesma dor que os flagelou.

Francisco Assis Neto foi um desses raros exemplares. Tendo perdido um filho amado que não conseguiu ser transplantado do coração, abraçou fervorosamente a causa da doação de órgãos, fundou a Adote, uma ONG voltada para a conscientização da população, e literalmente batalhou pela causa até os últimos dias de sua vida. No final de setembro, dentro das comemorações da semana da doação de órgãos, nos encontramos pela última vez, durante uma homenagem que recebemos no Palácio Piratini. Impressionaram-me a postura, o destemor e a naturalidade com que falou da alegria pelo reconhecimento do seu trabalho. 

Comentou dos projetos que tinha e do quanto ainda havia por fazer nos próximos anos. Só ele e eu sabíamos o quanto o câncer avançado inviabilizaria tudo aquilo, mas um resiliente não morre antes de morrer. Um tipo como o Chico devia ter o visto de permanência renovado indefinidamente. Um mundo tão escasso de nobreza devia ser poupado de um tal desperdício, ainda mais quando não há peças de reposição.

O ano novo encanta pela possibilidade de recomeçar. Recomecemos na expectativa de que possamos melhorar a vida dos outros. O Chico nunca desistiu de tentar. Então, que seja por ele.

J.J. CAMRGO