sábado, 11 de novembro de 2023


A PUREZA DE UM ÚLTIMO DESEJO

Não se pode esperar que as reações humanas que brotam por instinto sejam as melhores, até porque, quando não temos chance de elaborar nossas reações, elas ficam à mercê do estado de espírito daquele momento.

Em contrapartida, o que emerge do improviso na maioria das vezes revela na essência o que somos. Essa exposição visceral é benéfica, desde não seja agressiva, e é sobre este aprimoramento que se discute as melhores estratégias para acolher o sofrimento das famílias arrastadas pela doença dos seus amados.

O que não se pode negar é que o convívio com situações dramáticas exige apuro e reflexão, e isto pode ser ensinado de várias maneiras, incluindo técnicas de simulação.

Muitas vezes, por não saber o que dizer nem interpretar o que se diz diante do irreversível, os médicos inexperientes ignoram, por exemplo, o critério mais confiável para identificar o filho amoroso. E por ingenuidade embarcam numa grande farsa: o filho mais revoltado com a iminência da perda, aquele que esbraveja, protesta com veemência contra a precariedade da medicina e revela na sua indignação uma ruidosa transferência de culpa raramente é mais do que um pimpolho mimado, que agora está em sofrimento pela crise aguda de culpa e remorso, pelos afetos negligenciados, pelas confissões de amor omitidas e pelos amores desperdiçados.

Este ajuste final de contas é implacável, porque morremos exatamente como vivemos, ou seja, não dá para viver de um jeito e morrer de outro, e por isso a terminalidade é a depuração verdadeira da vida que tivemos e que, por ser última, não tolera dissimulações.

Um filho amoroso acompanhou a agonia prolongada da sua mãezinha que, aos de 91 anos, convivendo com as dores de um trauma que lhe fraturou as costelas, segredou ao filho, colorado desde pequeno, que ela, gremista durante décadas, tinha o sonho de um dia, quem sabe, conhecer a Arena do Grêmio. 

E ele, sensível e carinhoso, percebendo o pedido como último desejo, tratou de cumpri-lo. Aproveitou uma brecha no sofrimento da mãe que naquela tarde de sol parecia mais animada e o fez com a alegria de quem sabe o que significa o sorriso derradeiro de uma mãe encantada com afeto que plantara no coração do filho.

Quando conversamos, dias depois, por ocasião da morte dela, decorrente de complicações daquele trauma, o filho, com o choro contido e a voz embargada, sentiu necessidade de me relatar esta experiência na tentativa presumível de que a dor da perda pudesse ser minimizada pelo relato dessa expedição que alegrou, pela última vez, um velho coração afeito à mais genuína emoção.

Havia orgulho de ter oferecido à sua mãe uma alegria no ocaso de uma vida marcada pela doçura do convívio, e que deixava mais uma carinhosa lembrança que haveria de adoçar as conversas das reminiscências futuras, que haverão de misturar a saudade inevitável da perda com a certeza de ter se esforçado no limite do possível para corresponder, minimamente, ao seu amor incondicional. Esse tipo de amor que ganha de goleada no confronto com o time do coração.

J.J. CAMARGO 

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