sábado, 25 de novembro de 2023

25/11/2023 - 09h00min
Martha Medeiros

Mesmo em relações íntimas, nem tudo é da nossa conta

Os bons samaritanos condenam as ocultações, como se o ser humano não fosse complexo e carente.

É o teatro da humanidade. Diante da plateia, o nosso melhor. Na coxia, vida real.

Gilmar Fraga / Agencia RBS

Somos os bonzinhos universais. Não só porque não cometemos crimes, mas porque nos assemelhamos a santos: não mentimos, não omitimos, não reclamamos da família, não flertamos, não somos pais omissos, nem mães histéricas, não falamos mal dos amigos, não fazemos besteira nenhuma. Uma salva de palmas.

É o teatro da humanidade. Diante da plateia, o nosso melhor. Na coxia, vida real.

Reflexão despertada pelo filme Nada a Esconder, que não é novo, já teve algumas adaptações. Assisti à versão francesa, na Netflix. Três casais e um amigo avulso, durante um jantar, resolvem fazer um jogo aparentemente inofensivo: reunir seus celulares no centro da mesa e compartilhar todas as mensagens de WhatsApp, e-mails e telefonemas que entrarem durante a noite.

O que se comenta sobre uma amiga com outra amiga, no privado. A mensagem picante que um ex mandou. O convite que não foi estendido a um integrante da turma porque ele costuma dar vexame. Uma gravidez ainda sendo escondida. O gerente do banco que não larga do seu pé por causa de um rombo ainda não revelado à família. Um amante virtual. Tudo em cima da mesa, no viva-voz.

Os bons samaritanos condenam as ocultações, como se o ser humano não fosse complexo e carente, como se não existisse um perfil paralelo contrastando com o que se posta nas redes, como se não tivéssemos fraquezas e uma alma desordenada.

Frase atribuída a Cazuza: "Existe o certo, o errado e todo o resto". Impossível enquadrar o que lateja, o que arde, o que grita dentro de nós. Somos maduros e ao mesmo tempo infantis, por trás do nosso autocontrole há um desespero infernal. Abrir nossas válvulas de escape diante de um tribunal de impiedosos é uma violência, um desnudamento forçado. 

Semana passada escrevi que, sendo verdadeiros, jamais seremos desmascarados. E é verdade, bendita vida serena. Mas já estive do outro lado do balcão. Certa vez, não estava cumprindo mandamentos divinos e recebi uma mensagem anônima: "sorria, você estava sendo filmada". Não havia cometido crime algum, e ainda assim me senti agredida e enjaulada naquele lugar em que a inocência e a culpa se encontram.

Ninguém precisa saber tudo sobre o outro. Eu, ao menos, não exijo que as pessoas que amo me mostrem seu lado do avesso. Confio que estou informada o suficiente, e se não estiver, é do jogo. Todos nós podemos descobrir coisas desconfortáveis e ter nossa vida modificada, mas não acho gentil extrair a fórceps o que não é da nossa conta. É isso que não engolimos: mesmo em relações íntimas, nem tudo é da nossa conta.

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