quarta-feira, 21 de maio de 2025



21 de Maio de 2025
CARPINEJAR

Uma porta sem chave

Talvez eu seja o único da minha família a sentir saudade do Velho do Saco.

Foi uma figura disciplinadora, que me fazia pensar duas vezes antes de uma molecagem. Sua ameaça inibia o veneno da transgressão. Laborava dentro de mim como um antídoto. Eu espantava as tentações, os anseios espúrios, e redobrava a cautela, sabendo que ele estaria por aí me procurando.

Acumulava calafrios ao imaginar aquele homem misterioso, de rugas avançadas, bombacha surrada, chinelos desbeiçados, carregando um saco de ossos nas costas. Rezava a lenda que ele perambulava pelo nosso bairro e levava embora as crianças malcriadas, que se desgarravam das mãos nos passeios e desobedeciam aos pais.

Sua origem sombria flutuava no ar: havia matado a própria família ou os filhos pequenos? Por que vagava como um pária, um amaldiçoado? Morávamos na Rua Lageado, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. Para aumentar a verossimilhança e refinar o pavor, os pais fingiam dialogar entre si:

- Fulano de tal viu o Velho do Saco bebendo água da torneira no jardim de sicrana de tal, ali na Bagé.

Bagé era uma rua paralela à nossa. Entendíamos que ele estava pelas redondezas.

O costume de contar histórias de terror não revelava sadismo, mas uma mentalidade de cuidado da época: melhor o susto do que a repreensão, melhor a repreensão do que o castigo, melhor o castigo do que a irresponsabilidade. O que não existia era a indiferença.

Ter medo nos inspirava a respeitar. Assim como uma horrenda lagarta vira uma borboleta de diáfanas cores. O risco seria crescer sem medo de nada. Não era permitido levantar a voz, nem discordar dos horários, nem questionar a comida ou qualquer ordem. Se não experimentássemos o receio do inferno, aqui se tornaria o inferno - na absoluta falta de limites e restrições.

Aquelas histórias à noite serviam para acordar a alma, ao invés de apressar o sono. Para despertar valores e princípios do caráter. Para incentivar a atenção e a vigilância. Meus pais sempre nos doutrinaram a repelir desconhecidos: não abra a porta para estranhos, não fale com estranhos, não aceite nada de estranhos.

Depois, aprendi algo mais eficiente - e coloquei em prática com os meus filhos: em vez de desconfiar de pessoas estranhas, desconfie dos comportamentos estranhos. Já que abusos também são cometidos dentro do lar.

Entre as atitudes suspeitas, não permitir que um adulto converse a sós com a criança, ou que tire fotos em particular, ou que ofereça doces ou recompensas em troca de favores, ou que peça carinhos ou demonstre interesse por gestos inapropriados de afeto.

Olhar para a conduta, mais do que para a aparência, desfaz equívocos. Atinge todas as situações - dentro e fora de casa -, criando uma prevenção mais fidedigna.

Crianças não podem ter segredos. Segredos são perigosos. Essa é a criação que recebi - e que dei. Crianças não devem fechar a porta do quarto. A porta da minha infância não tinha chave. Jamais teve chave. Não se trancava. Até a adolescência foi desse jeito - ainda mais se convidávamos colegas da escola para trabalhos em grupo.

"Deixe a porta encostada" tratava-se de uma regrinha tão simples, mas que salvava vidas. Não se perdia o filho de vista. 

CARPINEJAR

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