quarta-feira, 28 de maio de 2025


27 de Maio de 2025
CARPINEJAR

86 anos de minha mãe

Se hoje sou abraçadeiro, se hoje sei dar um bom abraço - sem pressa, sem tapinha nas costas como se fosse uma porta, sem quebrar as costelas de ninguém, um abraço que é sachê e colo de pé, um abraço que é aconchego e dois corações batendo juntos -, se hoje sei o quanto um abraço salva, cura e cicatriza, se hoje sei que ele precisa durar mais de cinco segundos para funcionar, agradeço as lições da minha mãe, Maria Carpi.

Quando ela pregava um botão na minha camisa e cerzia as minhas roupas no corpo, aprendi a permanecer parado por aqueles instantes, olhando nos olhos dela, na imobilidade da ternura. Pretendia sair logo para brincar, e ela pedia: "Só um minutinho, já estou terminando".

Ali, naquele momento de cumplicidade de pano e agulha, testemunhei a paciência do afeto. Testemunhei a trégua para me reabastecer de presença. Testemunhei o quanto todo abraço é uma maneira de costurar as dores do outro.

Minha mãe é a minha professora do carinho. Seu abraço vem com a bênção. Você já sai protegido com seu perfume.

Hoje ela completa 86 anos. Não costuma participar de eventos públicos, pela mobilidade reduzida. Mas vai comparecer para autógrafos no Foyer Multipalco Eva Sopher do Theatro São Pedro, às 18h30min, assinalando o encerramento da exposição das gravuras de Alfredo Aquino e de seus poemas do livro A Chama Azul. Quem quiser conhecer a minha alfabetizadora terá uma chance rara.

Maria Carpi sequer imaginava que chegaria aos 80 anos. Diz que está de sobreaviso. Cada dia é um bônus. Anda como se estivesse com a dívida da vida paga. Tem sua existência quitada, tal qual um apartamento livre de parcelas.

Ela é a única pessoa do meu mundo para quem posso telefonar às 6h, que estará acordada. E não acordando: desperta mesmo, provocando piadas e disposta a narrar o que já realizou. É também a única que esbanja histórias para contar tão cedo.

Ela é partidária de bolsinhas pequenas. Usa na diagonal no corpo. Cansou de pesar os ombros com as alças.

Cobre seu pescoço com coloridas echarpes - seu pescoço é um segundo corpo, independentemente do que veste.

Mora sozinha. Faz de tudo, só não gosta de fazer a cama. Nunca vai admitir. Deixa a cama para arrumar à tarde, esperando que algum anjo apareça para cumprir o serviço.

Ela recita os seus versos chorando. Como se tivessem sido escritos por um estranho e soassem inéditos. Fico com vontade de rir, mas acabo chorando com ela.

Dona Maria nunca se casou de novo. Adepta do casamento uma só vez, nem teve mais nenhum namorado. Não tente convencê-la do contrário. É impossível. Não se menospreza escolhas de uma mãe.

Ela se vê muito agraciada quando um filho a visita. Empresta potes novos e depois cobra a devolução.

Ela nunca fala que estou errado, aconselha-me apenas a pensar melhor.

Ela brinca que não recorda o que comeu na minha gestação para que eu nascesse assim.

Seu maior prazer é conversar com os netos. Os netos são suas crianças passadas a limpo pela terapia.

Ela se lembra de cor dos horários das missas de Porto Alegre.

Ela sempre encontra um jeito de driblar a dieta e comer batata frita.

Ela cumprimenta as árvores. Ela não mata as formigas. Ela acredita na força minúscula da bondade.

Minha mãezinha, minha santa mãezinha de 1939, vai vivendo como quem não deve nada.

O que ela não entendeu até agora: todo dia que recebe a mais não é seu lucro, mas minha fortuna.

Meu legado de abraços. 

CARPINEJAR

Nenhum comentário:

Postar um comentário