sábado, 24 de maio de 2025

24 de Maio de 2025
CARPINEJAR

Olhos pesados de lágrimas

Os olhos azuis oceânicos, debaixo de tufos de sobrancelhas grisalhas, quase ruivas, caracterizavam a lente humana mais majestosa e universal que já existiu na fotografia mundial. O mineiro de Aimorés, Sebastião Salgado, fez o mundo piscar de modo distinto depois de suas pálpebras.

Ele se despede, aos 81 anos, com um trabalho documental que conseguiu a proeza de ser, ao mesmo tempo, transgressor e clássico.

Trouxe à fotografia o projeto coletivo dos murais de Candido Portinari. Na essência, era um Caravaggio da gelatina de prata, do papel fotográfico, mestre do claro-escuro, instaurando o barroco na captação crua das cenas.

Assim como em Caravaggio, a luz recai sobre os invisíveis - os pobres, os errantes, os exilados, os esquecidos - com uma expressividade humanista e dramática.

Sua única professora foi a realidade, com seus contrastes e exuberâncias, suas misérias e rostos impregnados de compaixão. Formado em Economia, mas autodidata na arte, começou a fotografar em 1973, aos quase 30 anos, misturando-se em unha e carne aos seus fotografados.

Seu olhar não era de fora, mas de dentro. Não agia como um observador distante, neutro, que clica e desaparece. Daí a explicação para seus registros íntimos, como se fossem autorretratos dos excluídos. Sua aflição existencial tornou-se sua estética. Não explorava o outro, adaptava-se à convivência, fundia-se ao outro. Não se resumia a um fantasma entre os vivos, era um vivo que mandava notícias do reino dos fantasmas da sociedade.

Abordou as migrações, as profundas desigualdades financeiras, a dizimação dos povos originários, a devastação das florestas, o colapso climático, a escalada desenfreada do consumo e do processo industrial.

- Nunca chego de surpresa ou incógnito a um grupo, sempre me apresento. Depois me dirijo às pessoas, explico, converso, e aos poucos nos conhecemos - assim explicou sua abordagem. Não procurava apontar as diferenças folclóricas entre as mais remotas culturas, mas identificar o que havia de comum entre todas elas: a dignidade apesar da desolação.

Ele converteu as cores gritantes e insuportáveis da dor na suavidade bíblica do preto e branco. Denunciou o apocalipse e a extinção da nossa espécie pela ganância e soberba.

Suas imagens já integram o nosso inconsciente coletivo: o verdadeiro formigueiro humano da mina de ouro de Serra Pelada, no Estado do Pará (Curionópolis); os três jovens trabalhadores rurais com as faces escurecidas de lama; os pescadores de atum na região da Sicília com as cestas vazias na cabeça; os garimpeiros nas minas de enxofre da Indonésia; os refugiados de origem africana acampados em condições precárias; três crianças órfãs e desnutridas em um campo de refugiados em Ruanda, durante o genocídio de 1994, sob uma coberta comum, apenas com parte dos traços à mostra; indígenas em canoas deslizando por um rio envolto em neblina, no Alto Xingu; e a menina de cinco anos, com a pele suja e o olhar desesperançado, ao lado dos pais, durante uma peregrinação pelo interior do Paraná em busca de um lote de terra, às margens da rodovia entre Laranjeiras do Sul e Chopinzinho.

Salgado passou por três das mais prestigiadas agências internacionais: Sygma, Gamma e Magnum.

Herdeiro de Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, David Seymour e George Rodger, pela Magnum flagrou a tentativa de assassinato a tiros do então presidente dos EUA, Ronald Reagan, em 1981.

Recebeu os principais prêmios da fotografia mundial, como o Eugene Smith de Fotografia Humanitária, dois prêmios ICP Infinity de Jornalismo, o Prêmio Erna e Victor Hasselblad e o prêmio de melhor livro de fotografia do ano do Festival Internacional de Arles por Workers (Trabalhadores).

Percorreu mais de 130 países, criando exposições e livros que marcaram a história: Trabalhadores, Gênesis e Êxodos. Deixa para nós os seus olhos pesados de lágrimas. Sangue de nosso sangue, águas de nossas águas. 

CARPINEJAR

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