sábado, 31 de maio de 2025


31 de Maio de 2025
COTIDIANO

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Com o tempo, essas bonecas passaram a ser vistas sob diferentes prismas, variando entre arte, terapia e fetiche midiático. No Brasil, ainda nos primórdios da internet, já era possível encomendar um reborn baseado na foto de um filho. Mesmo sem o alcance das redes sociais atuais, a proposta gerava controvérsia. E a palavra reborn (renascido) fazia, de certa forma, sentido: embora soubéssemos que não é possível reviver nossos bebês, a fantasia de um novo começo trazia algum conforto. Ainda assim, a vida exige que convivamos com os erros e acertos, e não com a ilusão de um recomeço perfeito.

Hoje, o Brasil lidera esse movimento. No TikTok, bebês reborn viraram febre, embalados por um consumo desenfreado e um desejo constante por curtidas e visibilidade. A indústria da performance social ignora a crítica, e o que vemos nas redes é um desfile de cenas simbólicas: partos simulados, bebês com batimentos cardíacos, nascidos "na placenta", sugerem até a criação do "Dia do Bebê Reborn", no Rio de Janeiro. Em Minas Gerais, houve proibição de atendimento a esses bonecos pelo SUS. Algumas pessoas já os matriculam em creches.

A pergunta que se impõe é: estamos assistindo a uma crise simbólica da maternidade? A maternidade sempre estará em conflito, pois é atravessada pela cultura, pelas projeções inconscientes e pelas exigências sociais de cada época. A forma como lidamos com ela é que muda, assim como mudam nossas ferramentas para enfrentá-la ou evitá-la.

O uso do bebê reborn pode ser saudável enquanto estiver no campo da metáfora, do "faz de conta". Quando ultrapassa esse limite e passa a ocupar o lugar do real, substituindo o bebê real por um boneco idealizado, entramos no território da negação. Nessa fronteira, surgem preocupações legítimas com a saúde mental. Já há diagnósticos relacionados a transtornos dissociativos em casos extremos.

Um bebê reborn não chora, não exige, não contraria. Ele representa a maternidade sem conflitos, sem noites mal dormidas, sem frustrações... Uma maternidade impossível. Ninguém compra um filho. Compra-se uma representação idealizada de um filho desejado. Mas filhos reais são seres com desejos, frustrações, personalidade própria, e que provocam reações intensas nos cuidadores. A maternidade, em sua essência, é um campo de tensões, encontros e desencontros, e é justamente esse embate que constrói vínculos verdadeiros.

Durante a gestação, criamos um "bebê imaginário", moldado por nossos desejos, medos e projeções. Imaginamos se dormirá bem, se será calmo, com quem se parecerá. Esse bebê sonhado dá lugar, no parto, ao bebê real, com demandas imprevisíveis e subjetividade própria. Podemos aceitá-lo como ele é ou tentar moldá-lo às nossas expectativas, criando um "bebê reborn" simbólico dentro de nós. Quando o desejo do cuidador apaga a individualidade da criança, abrimos espaço para uma relação patológica, onde a fantasia se sobrepõe à realidade.

Frustrações são parte do processo. São elas que nos ensinam a escutar, a interpretar o choro, a suportar o cansaço e a crescer emocionalmente. Tornar-se mãe, pai ou cuidador é atravessar esse campo de construção emocional que nos humaniza, e não perpetuar uma ilusão plástica e silenciosa do que gostaríamos que fosse.

Mais do que apontar excessos, este texto convida à reflexão: que maternidade estamos tentando viver ou evitar? 

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