sábado, 31 de maio de 2025


31 de Maio de 2025
CARPINEJAR

Série do casal

Algo me irrita. Vamos destrinchar por capítulos. Todo casal tem sua série predileta do momento. Você recebe permissão para explorar qualquer título, menos aquele. É produto proibido para a solidão.

Depois que Beatriz e eu decidimos um programa em comum, exigimos fidelidade pela temporada inteira. Nada de passar o seu par para trás. A sincronia é uma forma de evitar spoiler, indiretas ou o estraga-prazer das dicas. É o emparelhamento do amor, o Bluetooth da confiança.

Como eu viajo muito para shows e palestras, e nem sempre estou em casa, sou obrigado a mostrar disciplina. A suportar a abstinência. A segurar a imperiosa vontade. A controlar a obsessão. A não ceder à tentação. Aceito o fato consumado: não desejo discutir à toa. Aprendi a não dar sequência aos episódios, ainda que morra de curiosidade sobre o que os personagens farão.

Não desonro o combinado com o play escuso, escondido e egoísta nas plataformas do meu celular. Limito-me à TV. Protejo sua condição soberana e igualitária no casamento, revelando nossa irrestrita lealdade. E sigo o pacto à risca.

Só que, quando regresso das andanças e retomamos nosso delicioso entretenimento no sofá - com direito a pipoca e cobertor -, minha esposa dorme no meio da trama.

Como Beatriz pode apagar justamente naquela cena tão aguardada? Ela não está com fissura, com dependência química como eu? Série é como chocolate: impossível de recusar. Um bem- estar do cacau, despejando doses fartas de teobromina, cafeína e feniletilamina em nosso corpo, colorindo a massa cinzenta.

Eu observo Beatriz atentamente, faço um exame de corpo de delito. Levanto o seu braço, e ele cai. Ela realmente desmaia como uma pedra. Não se mexe. Fica na posição fetal (letal) de conchinha.

Eu não sei como proceder: se a acordo ou a deixo dormir. Se continuo rodando e espero que ela recupere o atraso no dia seguinte. Se paro tudo, para não contar nenhuma vantagem, e me encaminho junto para a cama, vencido pela triste casualidade.

Nem sei quando ela começou a cochilar. O que acompanhou de verdade. Até onde prestou atenção. Foram alguns minutos, ou desde o princípio? Não existe VAR para flagrar o instante do coma de seu cansaço.

Acontece uma crise de consciência sem tamanho, uma culpa estratosférica - e sequer desfruto da chance de consultá-la naquele estado de hibernação. Se ela falar algo, não há certeza de que se lembrará do diálogo. É provável que esteja sonhando.

O que eu descobri tardiamente - e gostaria de avisar a todos os maridos que amargam semelhante situação e desespero, pois é um alerta de utilidade pública - foi a artimanha capaz de colocar um casamento em perigo.

Não devo ser o único corno na história da humanidade. Acredito que corresponda a uma regra feminina. Ela dorme porque já assistiu sozinha ao episódio. Perdeu o interesse. Finge que é novidade, simula desconhecimento de causa, mas não se aguenta com a repetição, e acaba capotando.

Não duvido que tenha o costume de maratonar a série completa enquanto eu me vejo distante. Isso explica sua tranquilidade, sua paz de espírito, seu despojamento livre de urgências. 

CARPINEJAR

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