
Série do casal
Algo me irrita. Vamos destrinchar por capítulos. Todo casal tem sua série predileta do momento. Você recebe permissão para explorar qualquer título, menos aquele. É produto proibido para a solidão.
Depois que Beatriz e eu decidimos um programa em comum, exigimos fidelidade pela temporada inteira. Nada de passar o seu par para trás. A sincronia é uma forma de evitar spoiler, indiretas ou o estraga-prazer das dicas. É o emparelhamento do amor, o Bluetooth da confiança.
Como eu viajo muito para shows e palestras, e nem sempre estou em casa, sou obrigado a mostrar disciplina. A suportar a abstinência. A segurar a imperiosa vontade. A controlar a obsessão. A não ceder à tentação. Aceito o fato consumado: não desejo discutir à toa. Aprendi a não dar sequência aos episódios, ainda que morra de curiosidade sobre o que os personagens farão.
Não desonro o combinado com o play escuso, escondido e egoísta nas plataformas do meu celular. Limito-me à TV. Protejo sua condição soberana e igualitária no casamento, revelando nossa irrestrita lealdade. E sigo o pacto à risca.
Só que, quando regresso das andanças e retomamos nosso delicioso entretenimento no sofá - com direito a pipoca e cobertor -, minha esposa dorme no meio da trama.
Como Beatriz pode apagar justamente naquela cena tão aguardada? Ela não está com fissura, com dependência química como eu? Série é como chocolate: impossível de recusar. Um bem- estar do cacau, despejando doses fartas de teobromina, cafeína e feniletilamina em nosso corpo, colorindo a massa cinzenta.
Eu observo Beatriz atentamente, faço um exame de corpo de delito. Levanto o seu braço, e ele cai. Ela realmente desmaia como uma pedra. Não se mexe. Fica na posição fetal (letal) de conchinha.
Eu não sei como proceder: se a acordo ou a deixo dormir. Se continuo rodando e espero que ela recupere o atraso no dia seguinte. Se paro tudo, para não contar nenhuma vantagem, e me encaminho junto para a cama, vencido pela triste casualidade.
Nem sei quando ela começou a cochilar. O que acompanhou de verdade. Até onde prestou atenção. Foram alguns minutos, ou desde o princípio? Não existe VAR para flagrar o instante do coma de seu cansaço.
Acontece uma crise de consciência sem tamanho, uma culpa estratosférica - e sequer desfruto da chance de consultá-la naquele estado de hibernação. Se ela falar algo, não há certeza de que se lembrará do diálogo. É provável que esteja sonhando.
O que eu descobri tardiamente - e gostaria de avisar a todos os maridos que amargam semelhante situação e desespero, pois é um alerta de utilidade pública - foi a artimanha capaz de colocar um casamento em perigo.
Não devo ser o único corno na história da humanidade. Acredito que corresponda a uma regra feminina. Ela dorme porque já assistiu sozinha ao episódio. Perdeu o interesse. Finge que é novidade, simula desconhecimento de causa, mas não se aguenta com a repetição, e acaba capotando.
Não duvido que tenha o costume de maratonar a série completa enquanto eu me vejo distante. Isso explica sua tranquilidade, sua paz de espírito, seu despojamento livre de urgências.
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