sábado, 31 de outubro de 2015


01 de novembro de 2015 | N° 18342
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Machismo na cozinha,


Agressões virtuais como as sofridas pela menina Valentina alimentam a atmosfera de violência sexual e a cultura do abuso

Valentina é uma menina que ganhou notoriedade pelo programa MasterChef Júnior. Ela tem a aparência de sua idade, 12 anos. Veste-se de forma adequada, sua fala e expressões são as de uma púbere comum. É graciosa, como muitas meninas nessa fase. Mas o protagonismo que ganhou deve-se a manifestações agressivas de cunho sexual de que foi vítima na internet. A questão é: o que fez uma garota, participante de um programa de culinária, ser alvo dessas agressões? Se alguém conseguiu ver nela qualquer tipo de insinuação, essa pessoa é um prodígio de desconhecimento de si, afinal, toma como de fora o que lhe brota de dentro.

Certos homens, por uma insegurança básica de sua masculinidade, acreditam que toda e qualquer exposição feminina que existe, ou que eles supõem que exista, como nesse caso, é para lhes provocar. Como se elas estivessem apenas esperando o seu olhar. Uma vez que se acreditaram provocados, devem agir, demonstrar sua macheza, mostrar de que falta de fibra são feitos. É uma típica atitude erotomaníaca, no sentido de projetar seu desejo e suas fantasias no outro. 

Frente a esse tipo de atitude, de sentirem-se convocados a uma cena que não lhes diz respeito, temos duas possibilidades: os primeiros não necessariamente são abusadores reais, ficam fantasiando e agindo nas sombras, na internet, por exemplo. As redes sociais são o paraíso para os covardes, desse e de todos os tipos, lá não há uma responsabilização direta sobre as agressões. E no espaço virtual começa e termina sua ação constrangedora. Seu dano não é pequeno porque cria uma atmosfera de violência sexual, uma cultura do abuso.

Mas vamos aos piores, o abusadores, os pedófilos. Eles não fazem proselitismo, não latem, eles mordem, por isso são quietos. O que apreciam é a ingenuidade da vítima. Seu gozo necessita dessa assimetria de posições, não é só de força física e de idade, mas principalmente de experiência. Eles querem sentir-se como mestres, iniciadores, a inocência e a surpresa da vítima aumentam-lhes o efeito prazeroso: quanto mais frágil seu objeto, maior o gozo. 

Arriscam, em termos legais, para não arriscar-se onde se sentem realmente frágeis: na entrega erótica, não têm peito de enfrentar alguém em pé de igualdade. A escolha de objeto diz muito de nós, pois há uma certa identificação com o parceiro. Por isso pode-se dizer que o abusador procura parceiros com idade na qual parou sua maturidade sexual. A sexualidade adulta põe a maioria dos pedófilos a correr, pois ali são eles os fracos e impotentes que sua equação sexual particular requer.

No episódio desta semana, Valentina apareceu bem menos, suas intervenções foram reduzidas sob o impacto da polêmica. A lógica de que se Valentina não estivesse na TV nada disso aconteceria é a mesma da burca. Esse tipo de cerceamento da circulação social de meninas e mulheres pressupõe que sua presença produz uma inevitável e incontrolável mobilização do desejo masculino. Na sua selvageria autocomplacente, homens exigem que as mulheres fiquem presas para não serem perturbadas. Promovem o exibicionismo da macheza por temor dos efeitos impactantes que o corpo feminino lhes produz. Esse tipo de agressor tem medo das mulheres e reage com a violência das feras acuadas.

Talvez a televisão, assim como a internet, seja uma forma de exposição forte para alguém pequeno, porém, as crianças gostam de ver-se protagonistas de suas atrações. Seria triste se a televisão só mostrasse adultos. É claro que os critérios têm de ser rigorosos, mas já tivemos muitas experiências de exposição erótica de adolescentes no passado da TV, e MasterChef Júnior está longe de ser uma delas.

O programa de que Valentina participa não é como os realities shows da versão adulta, onde a humilhação e a concorrência ao estilo dedo no olho parece ser parte integrante do show. A versão mirim é adequada à infância, com mais carinho e elogios do que outras coisas. Não classificaria o programa como educativo, mas ele coloca questões sobre como criamos nossos filhos. A ideia de proteção da infância é correta, mas muitas vezes exageramos na dose, deixando as crianças fora das experiências da vida, meros espectadores do mundo adulto.

Crianças na cozinha, sempre que supervisionadas, me parece uma grande ideia. A comida deixa de ser mágica, elas descobrem o esforço requerido. A arte culinária pede boa dose de concentração, uma sincronização da inteligência motora com a intuição, com a percepção sensorial, é preciso pensar quantidades e tempos de preparo, enfim, não é uma ciência fácil. E deve ser bem mais fácil ensinar química, física e biologia para quem já pilotou um laboratório simples, como a cozinha, do que para quem nunca entrou nela.

A culinária entrou na moda quando a classe média, incluindo os homens, teve que cozinhar. Enquanto era coisa de empregados e mulheres, foi tratada como algo menor. Só que agora as mulheres abandonaram a imposta vocação unívoca para as panelas e, por causa das legislações trabalhistas, este ofício tornou-se oneroso. A consequência, ótima aliás, é que a alienação culinária é menor entre os adultos mais abastados – como todos têm que se virar um pouco no fogão, cozinhar tornou-se chique.

Na ocupação da cozinha por homens e crianças encontramos a inversão do machismo que confina a feminilidade à vida privada. Elas saíram, eles entraram. As crianças, por sua vez, conscientizadas de que a alimentação é algo no qual se pode ser ativo, deixam de comer como quem mama, o que se lhe puser na boca. Assim, a obesidade e as doenças decorrentes da alienação do ato de comer certamente diminuirão. Essas condutas incivilizadas não conseguirão reconduzir as mulheres a serem escravas de cama e mesa, nem as crianças a seres amedrontados e passivos. Vivemos um momento de reação a essas conquistas, mas elas são irreversíveis.

Psicanalista*