sábado, 24 de outubro de 2015




25 de outubro de 2015 | N° 18335 
MOISÉS MENDES

O diário de FH

Diários de verdade devem ter a franqueza das anotações de Getúlio Vargas. Como este registro de 20 de novembro, menos de um mês depois da Revolução de 30: ...eu entrei de botas e esporas nos Campos Elísios, onde acampei como soldado, para vir no outro dia tomar posse no governo do Catete com poderes ditatoriais.

Nos discursos, Getúlio tomara o poder em nome do povo, para finalmente construir um governo democrático. Mas não havia por que enganar o diário: quem o escrevia era alguém que só poderia governar, naquelas circunstâncias, como ditador.

Getúlio escreveu o diário à mão, anotando até os encontros com a amante. Fernando Henrique Cardoso falou para um gravador, ao anoitecer, durante os oito anos dos dois mandatos. As confidências resultaram nos Diários da Presidência (Companhia das Letras), que estarão em quatro volumes. O primeiro será lançado no dia 29. Trechos têm saído em pílulas diárias nos jornais.

As divagações de Getúlio foram publicadas depois da sua morte. FH diz ter revisado o seu diário falado depois da transcrição das fitas. Fica a dúvida sobre a tentação que pode ter levado o FH de hoje a intervir, no café da manhã, nos monólogos noturnos do FH de quase 20 anos atrás.

O primeiro volume, do período menos complicado, do início do primeiro governo (1995-1998), já revela um FH angustiado com arranjos, negaceios e fofocas. Ele diz, em 1996: “Estou cada vez mais convencido de que o mal está em que todo o grupo próximo a mim fala (...). As dez pessoas mais próximas são as que mais fazem confusão, porque são essas fofocas que saem no jornal”.

Também em 1996, faz o registro que teve maior repercussão até agora. Conta que teve um encontro revelador com Benjamin Steinbruch, presidente da Companhia Siderúrgica Nacional. Stein- bruch havia assumido uma cadeira no conselho da estatal.

Está no diário: “Ele me disse que a Petrobras é um escândalo”. Que o Orlando Galvão Filho, diretor financeiro, é quem “manobra tudo”. Que os diretores-executivos são também membros do conselho de administração. FH diz: “Acho que é preciso intervir na Petrobras”.

Mas vacila: “O problema é que eu não quero mexer antes da aprovação da lei de regulamentação do petróleo pelo Congresso, e também tenho que ter pessoas competentes para botar lá”.

Em agosto de 1997, o Congresso aprova o fim do monopólio da exploração do petróleo pela Petrobras. Em 1998, a empresa adota, por decreto de FH, o sistema de contratação de serviços que dispensa licitações, depois apontado como multiplicador da corrupção.

A conversa com Steinbruch aconteceu em outubro de 1996. Naquele mesmo outubro, Paulo Francis denunciou, no programa de TV Manhattan Connection, que estavam roubando na Petrobras: “Imaginem, roubam, tem superfaturamento. É a maior quadrilha que já existiu no Brasil”.

O ex-gerente de Serviços Pedro Barusco já confessou em depoimentos da Lava-Jato: em 1997, ele começou a receber propinas na Petrobras, como ladrão avulso, até juntar US$ 97 milhões em contas na Suíça.

Por que FH não foi adiante para pelo menos saber mais dos escândalos? Por que até hoje não se sabe para quem Barusco roubava? Por que Francis, processado pelos diretores da Petrobras, foi deixado sozinho pelos próprios colegas e morreu sem conseguir provar a roubalheira?

Aguardemos os quatros volumes do diário de FH. Se o tom for o de Getúlio, talvez venhamos a saber mais. Se não for, é provável que nunca mais saibamos nada.