terça-feira, 27 de outubro de 2015




27 de outubro de 2015 | N° 18337 
DAVID COIMBRA

A perturbadora questão 14


Recebi de presente a cópia dessa questão 14 do Enem. Trata-se de uma safira da língua escrita. Leia o texto escolhido pelos organizadores da prova, de Santos, M. Ele começa com autoridade:


“No final do século XX e em razão dos avanços da ciência, produziu-se um sistema presidido pelas técnicas de informação”.

Assim que li a primeira frase, pensei, um pouco aflito: a que técnicas se referirá Santos, M.? Estará ele falando da internet? A internet é uma “técnica da informação”? Oh...

Mas Santos, M., pouco ligando para minhas dúvidas, foi em frente com galhardia, afirmando que as técnicas essas “passaram a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando ao novo sistema uma presença planetária”.

Fiquei ainda mais intrigado. “As demais”? As demais o quê? As demais técnicas? Técnicas de quê?

Santos, M. afirmou que as técnicas de informação serviram de elo entre duas outras técnicas. Uma técnica numa ponta, outra técnica na outra ponta e as técnicas de informação entre elas, unindo-as a fim de assegurar ao tal novo sistema “uma presença planetária”. Que técnicas foram unidas pelas técnicas de informação, Santos, M.? Me diga!

Ele não disse. Santos, M. mostrou-se indiferente à minha ignorância. Ele apenas acrescentou, de modo sombrio, que “um mercado que utiliza esse sistema de técnicas avançadas resulta nessa globalização perversa”.

Santos, M. me deixou realmente inquieto.

Só que, abaixo de seu texto enigmático, vem o dos professores que redigiram a prova do Enem. E eles me aliviaram, dizendo coisas como “eliminação das vantagens locacionais”. Que palavra tão bonita essa, “locacionais”. Nunca a tinha usado. Senti inveja dos professores do MEC, que saem por aí falando em coisas locacionais. Anotei essa palavra e qualquer dia vou engastar um “locacional” num texto, de preferência antes de um ponto de exclamação:

“Isso é locacional, meu caro! Muitíssimo locacional!”

Já o item B falou em “limitação dos fluxos logísticos”. Isso me revoltou. Onde se viu um absurdo desses, limitar os fluxos logísticos? Temos de lutar para que os fluxos logísticos não sejam limitados! Fluxos logísticos, obviamente, têm de fluir, não ficar emperrados. Não, senhor!

Poderia derramar dezenas de parágrafos ponderando acerca das vantagens locacionais e até dos fluxos logísticos, mas sei que a resposta correta é a derradeira: “Automatização dos processos fabris e aumento dos níveis de desemprego”. Isto é: foram os avanços da ciência que causaram o aumento do desemprego no Brasil e no mundo. Maldita ciência! O que será que Santos, M. sugere para nos proteger dela?