segunda-feira, 12 de outubro de 2015



12 de outubro de 2015 | N° 18322 
DAVID COIMBRA

A graça de escrever


Meu filho disse uma frase que me marcou, quando falei para ele que, se conseguisse largar do bico, o esqueceria. Ele respondeu que estava tentando, mas não conseguia esquecer, e depois implorou, com toda a aflição de seus cinco anos de idade:

– Pai, me ensina a esquecer. Como atender àquele pedido?

Ninguém ensina a esquecer. O tempo ensina. E deixei meu filho com o bico.

Seis meses depois, mudei-me para os Estados Unidos. Ele e minha mulher ficaram ainda 45 dias em Porto Alegre, antes de se juntarem a mim. Foi um período difícil de separação. No primeiro dia em que eles chegaram aqui, na nossa nova casa, meu menino estendeu-me a mão. Na palma, o pequeno bico.

– Pode botar no lixo. Não quero mais.

Peguei o bico, mas não pus no lixo. Guardei numa gaveta, para o caso de ele mudar de ideia. O bico continua lá, intocado. Ele não voltou atrás. Estava determinado a mudar de fase, a evoluir. E evoluiu. Evoluímos todos nós, eu, ele, minha mulher e, em graus diferentes, outras tantas pessoas de meu afeto. Foi uma mudança de vida cheia de significados. Não foi fácil. Lembro-me de quando deixava meu filho na escola. Ninguém falava português, nem as professoras, e ele não falava inglês. Ele me olhava como um cachorrinho abandonado, eu saía com o coração aos pedaços, sentindo-me um carrasco, não um pai.

Escrevi muito acerca de tudo isso, nesses últimos tempos. Sobre o Brasil, sobre os Estados Unidos, sobre as diferenças e as semelhanças entre os dois países, sobre os dias amenos ou nem tanto, sobre a neve e sobre o sol, sobre meninos pequenos e árvores robustas, sobre a dádiva de estar vivo. Agora, estou lançando um livro acerca desse tempo. O título é A Graça de Falar do PT, mas não é um livro de crítica ao PT, nem é a respeito do PT. Porém, o PT, de alguma forma, marca o tempo em que desenvolvo o livro. Esse é um tempo do PT, do partido que há quase década e meia comanda o país e que foi responsável direta e indiretamente por muitas transformações desta grande nação. Para o bem e para o mal.

O Brasil de 2015 não é o de 2003. Tudo o que ocorreu de lá para cá não apaziguou o país. Ao contrário: os brasileiros estão mais amargos e mais duros. Mas tem algo bom nisso tudo: estamos em plena mudança. Estamos em obras. As coisas não ficarão como estão. É bom testemunhar essa transformação e, de alguma forma, fazer parte dela.

O livro é sobre isso também.

Nunca escrevi uma crônica sobre os outros 17 livros que lancei, por pudor da autopromoção. Mas desta vez é diferente.

Todos sabem por que vim para os Estados Unidos: foi para combater um câncer. Para continuar vivo. Pelo menos por enquanto, estou vencendo esse combate. Estou ótimo, e minha família está feliz. O que escrevi, nesse tempo de transformação e de luta, escrevi com as entranhas. Muito do que senti e pensei derramei por essas linhas. É um tempo importante, que, por não querer esquecer, imortalizei em papel. Gostei de escrever a respeito. Espero que o eventual leitor do livro sinta isso. Sinta o prazer que senti. E entenda um pouco desse tempo que vivi, vivemos todos, juntos ou separados, um tempo em que vencemos. Venceremos.