quarta-feira, 28 de outubro de 2015



28 de outubro de 2015 | N° 18338 
PEDRO GONZAGA

TANTOS CAFÉS


Lembro de um antigo poema do Ferreira Gullar em que, diante do café, o eu-lírico pensava na cadeia produtiva do açúcar, na exploração do homem pelo homem, nos canaviais e nas usinas escuras, para que pudesse, naquele instante, adoçar o seu café em Ipanema. Lembro do som dos versos enquanto cogito de onde vêm as três gotas do edulcorante que agora uso na manhã fria para adoçar o meu café. 

Os amantes da bebida sabem – e gentilmente me perdoam por estragá-la, ferindo-lhe a pureza – que a olorosa fumaça é privilégio das manhãs frias. No calor, que graça? Longa também poderia ser a discussão de quão válido é combinar o café com o leite. Lembro de Manuel Bandeira num curta-metragem, humildemente, de chambre, tomando seu café clarinho com os olhos na xícara. Declamo Café com pão em singela homenagem, à maneira como Tom Jobim o musicou.

Penso que talvez seja esta a derradeira manhã fria de 2015, e que logo farei 40 anos e, por mais melancólico que seja considerar a coisa nesses termos, vivida estará a metade das manhãs frias que me cabem. Lembro de um filme francês em que um personagem dizia, “Todas as manhãs do mundo são sem volta”, que eu repetia vaidosamente nos meus vinte, mas que finalmente entendo, porque chega a hora em que a grande arte deixa de ser apenas uma antecipação.

Bebo um novo café antes que esfrie. Ao retornar, acrescento que, apesar das verdades ásperas, minhas lembranças cafeinadas teriam muito menos graça sem essa coletânea artística que a memória guarda, mesclada aos eventos vitais. 

Lembro de meu falecido amigo, professor de piano, que guardava as sobras de café das térmicas e um dia por semana as requentava para um aluno qualquer, só para ver como a injustiça do mundo se manifestava, enquanto o pobre bebia a bebida intragável. Interessava-lhe a aleatoriedade da maldade, mas isto é assunto longo para um café curto.

Lamento não poder escrever a crônica ao tempo de uma só xícara. Mas vocês podem lê-la a esse tempo, e por tolo que pareça, ao saber disso, mesmo depois do evento, aí estará a alegria do escrevinhador. Esta alegria tardia que é boa parte da alegria de escrever.