quarta-feira, 14 de outubro de 2015



14 de outubro de 2015 | N° 18324
LIVROS

Marías lança um dos livros do ano


EM ASSIM COMEÇA O MAL, Javier Marías revisita traumas da Espanha pós-Franco

Não há como negar a assombrosa força da escrita de Javier Marías. Um dos melhores autores contemporâneos, o espanhol tem seu novo romance lançado agora pela Companhia das Letras.

Há paralelos entre Assim Começa o Mal e Os Enamoramentos, trabalho anterior de Marías. Um deles é o ressurgimento, ainda que breve, do antigo personagem Miguel Deverne. O casamento e a amizade, tópicos já discutidos, são retomados aqui com renovado fôlego.

É o início dos anos 1980. A Espanha dá seus primeiros passos depois da morte de Franco (1892 – 1975). Nessa época de efervescência e incerteza, o narrador, o jovem Juan Vere, é contratado como assistente pessoal de um diretor de cinema de relativo prestígio, Eduardo Muriel.

Muriel acredita que um grande amigo seu, Jorge Van Vechten, possa ter cometido um ou mais atos imorais durante a ditadura franquista. Para se certificar, pede que Juan investigue o sujeito. Juan cumpre sua missão, mas, de quebra, espiona o que não deveria – sobretudo o casamento infeliz do cineasta.

Marías não renuncia à linguagem marcadamente literária. As constantes referências à escrita já denunciam que se está diante de um romance que analisa e cultua os próprios mecanismos. Nos longos diálogos e solilóquios – que seguem, sem exceção, o estilo minucioso do narrador –, há pouco ou nenhum desejo de emular a fala oral.

Se Os Enamoramentos propunha certa intertextualidade com a obra de Balzac (e com o tema do casamento, tão caro ao escritor francês), aqui Marías evoca Shakespeare (e os temas repisados do rancor e da vingança). O próprio título do livro foi retirado de uma frase do autor de Macbeth. Quando começa o mal, diz o dramaturgo, o pior fica para trás.

A frase está ligada ao esquecimento: quando se deixa as vilezas enterradas e impunes, a dor amortece, mas o mal – a injustiça – tem início. Aqui, além de ações confinadas ao âmbito privado dos personagens, há todo tipo de atrocidades cometidas em nome ou sob o manto dos ideais políticos. É fácil traçar um paralelo com a ditadura militar brasileira, depois da qual tanta coisa foi varrida para debaixo do tapete.

Como todo livro de Marías, este é lento e reflexivo. Suas orações normalmente sutis e alusivas tendem a deixar muita coisa para a imaginação do leitor. Seu único defeito, no entanto, é a reiteração insistente de algumas cenas.

A repetição, todavia, que já é uma marca de Marías, não tira o brilho da narrativa. Assim Começa o Mal é, sem dúvida, um dos livros do ano.