quinta-feira, 29 de outubro de 2015




29 de outubro de 2015 | N° 18339 
DAVID COIMBRA

O amor à linguiça

Fiquei um pouco ressentido com essa história de que os embutidos dão câncer. É algo que preciso abordar, mas, antes de ir em frente, tenho de ressaltar que estou ciente dos riscos que corro, riscos que foram ignorados pela própria presidente da República. Eu, se fosse assessor da Dilma, teria sido pressuroso em lhe advertir, antes do seu famoso discurso de saudação à mandioca:

– Presidente, há certas palavras que, por si só, tiram a seriedade de qualquer manifestação, no nosso querido e irreverente Brasil.

A mandioca é uma delas. Bem como a linguiça, o salame e outros produtos com formato sugestivo.

Ocorre que, sim, sempre fui apreciador de embutidos. Meu arroz de china pobre, também conhecido como arroz com linguiça, tornou-se célebre nos anos 1990, em Porto Alegre. Eu morava num apartamento modesto, porém funcional, nos altos da Rua Portugal, e foram inúmeras as noites em que recebi amigos com uma olorosa travessa de arroz de china pobre, mais, é claro, cerveja branquinha, de tão gelada. Todos se repimparam à grande, e elogiaram meus dotes culinários, e uma ou duas moças que me eram caras sorriram com mais brandura para mim, terminado o jantar.

Você talvez diga que arroz com linguiça não é prato para ser oferecido a uma mulher que se anseie conquistar, mas uma vez ouvi a seguinte frase de uma jovem semideusa, enquanto ela tirava, com um decidido golpe de guardanapo, um pingo de molho de tomate que lhe tingia os lábios de gomo de bergamota:

– Isso foi muito, muito bom...

Ah! Primeiro a linguiça, depois o champanhe. Sim, senhor.

Meu cachorro-quente também ombreia com o cachorro-quente do Rosário, e a minha avó, a saudosa dona Dina, suprema cozinheira, fazia um prato de linguiça bem fininha com abóbora que, Jesus Cristo!, jamais provei iguaria semelhante, desde que ela se foi para um plano mais elevado, onde certamente se pode comer de tudo, beber de tudo e todos os sinais de wi-fi são liberados.

E tem o salame! E tem a mortadela, tão generosamente distribuída entre duas fatias de pão amigas nos eventos patrocinados pelo PT. O povo ama os embutidos, essa é a verdade.

E eu também.

Mas, olha, outro dia, andei tendo um câncer, e não duvido que tenha sido coisa da linguiça. Com o que, declaro agora, com pesar e circunstância, que renuncio aos embutidos.

Nunca mais salsichão com salada de batata como entrée dos churrascos na casa do Degô.

Nunca mais hot dogs, nem mesmo aqui, na terra das oportunidades, da liberdade e, bem, dos hot dogs.

Nunca mais salame e salamito, esses dois primos-irmãos que acompanharam fatias de pão francês que me foram servidas em antigos cafés da tarde, tipo de refeição extinto pelo açodo da vida moderna.

Nunca mais minha pièce de résistance, o inefável arroz de china pobre... Nunca mais. Nunca mais.

Não sei como será viver num mundo sem a linguiça, sem a salsicha, sem nem o chouriço. O velho chouriço. Será um mundo mais saudável, é certo que será, e daqui a pouco lançarão embutidos light e inofensivos como um grão-de-bico, também disso sei, mas... Não seremos mais os mesmos. Paciência. Que a vida sem embutidos valha a pena ser vivida.