sexta-feira, 30 de outubro de 2015


30 de outubro de 2015 | N° 18340 
MOISÉS MENDES

A qarta


Publico abaixo carta escrita à mão, deixada na portaria da Zero. Seu Jorge, da recepção, me disse que foi entregue pelo seu Eusébio em um envelope pardo. Mais não sei. Eis a íntegra:

Antecipo-me a outras considerações gerais e apresento-me como Qorpo-Santo, nascido José Joaquim de Campos Leão. Esta qarta (peço que se publique assim mesmo, com “q”) tem o princípio de expressar sentimentos sobre os episódios decorridos da recente passeata do Orgulho Louco no Alegrete.

Nasci em Triunfo em 1829 e morri em Porto Alegre em 1883. Sou o autor da famosa Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade e sei que alguns me consideram o louco mais famoso do Rio Grande. Antes de ser dado como Santo, muito antes de brilhar em meu cérebro um raio de inteligência e de me considerarem doente mental, morei no Alegrete, de 1857 a 1861, onde fui subdelegado de polícia e vereador e criei um colégio, o Alegretense.

De modos que me sinto habilitado a raciocinar o que segue sobre o alvoroço em torno da passeata. Muitos devem ter dito: Qorpo Santo estaria lá, se ainda estivesse vivo. Pois saibam que eu estava.

Nenhuma cidade reúne quatro mil pessoas numa passeata de loucos, sem um espírito que a inspire.

Eu inspirei Alegrete!!! Fiquei sabendo que alguns não gostaram da passeata, que teria exposto loucos ao ridículo. Louco não teme o ridículo, o ridículo está na cabeça dos não loucos. O homem precisa relacionar o seu trabalho com o espiritual. Nossos corpos não são mais que os invólucros de espíritos.

Uns gozam a posse de muitas mulheres, como os sultões, e outros querem dinheiro. Os participantes do Orgulho Louco só querem a festa, a alegoria de poder dizer que louco precisa estar solto; louco confinado não cria, não pensa e não se diverte.

Ninguém é completamente feliz se não vive como deseja. Eu mesmo desejei escrever sem parar e em um mês comecei e finalizei oito peças. Oito!!!

Quem duvidar, que consulte os escritos, as falas e os atos do Aníbal Damasceno Ferreira, do Antônio Carlos de Sena, do Guilhermino Cesar e da Denise Espírito Santo (eu ainda me intrigo com isso, eu Qorpo, ela Espírito) e muitos outros. E quem quiser saber mais de mim e dos que se prezam como muito certos que leia Cães da Província, do Luiz Antonio de Assis Brasil. A arte contém verdades.

Todos têm lugar neste mundo de Nosso Senhôr Jezusqristo, e é muito especial o lugar dos que desfilam sem temer a própria loucura. Não se desdenha um desfile com quatro mil loucos, ou alguém pensa que havia gente certa nesse desfile do Alegrete?

Autorizo publicação. Saudações. Qorpo-Santo