sábado, 2 de dezembro de 2017



02 DE DEZEMBRO DE 2017
J.J. CAMARGO

INSANIDADE LEGALMENTE RESPALDADA

a indústria da judicialização não para de crescer, agravada por sentenças ensandecidas

Nós, brasileiros, herdamos a tradição portuguesa da autocrítica exagerada e depreciativa. Como se denegrir o meio em que vivemos justificasse nossas deficiências e precariedades. Escolha um tipo qualquer de atividade profissional e se formará imediatamente uma fila de detratores da brasilidade, responsável por esse complexo de inferioridade que nos impusemos sem pressão externa.

Participei de um debate entre colegas que pretendia identificar, baseado em experiências vividas ou confidenciadas, onde era mais complicado ser médico neste século de transformações galopantes em que tudo muda antes que nos habituemos com a nova realidade.

A origem da discussão é a tomada de consciência de que a figura do médico tradicional está ameaçada em muitos lugares e extinta em outros. E a metamorfose tem como agravante a celeridade que leva de roldão conceitos seculares e frustra expectativas consideradas inabaláveis.

Tendo como ponto comum apenas o reconhecimento de que tudo mudou, mal conseguimos acreditar quando relatam mudanças em outros países em que se praticava uma medicina que costumávamos copiar com admiração, e agora assistimos perplexos a uma realidade que não invejamos mais. Na França, médicos têm sido processados e punidos sob a alegação de não terem informado corretamente às mães grávidas da possibilidade, por mais remota que fosse, de que o feto pudesse ter alguma anomalia, o que as conduziria ao aborto preventivo. 

No controverso caso Perruche, uma criança com deficiência atribuída a uma rubéola da mãe nas primeiras 12 semanas de gestação figurou como autora de ação de reparação de danos por ter nascido em vez de ter sido abortada.

Há 30 anos, a medicina dos EUA era consensualmente festejada e o que fazia ou recomendava servia de referência e modelo aos mais exigentes manuais de conduta técnica e ética, copiados e difundidos com religiosidade pelos médicos jovens egressos da escola americana. Quando a judicialização inundou a prática médica ianque, a transferência daqueles rígidos ditames anglo-saxões para a nossa população latina revelou-se francamente agressiva e cruel.

O compartilhamento com o paciente de todas as decisões técnicas do tratamento, ingenuamente interpretado como um avanço respeitoso na conquista da soberania plena do indivíduo, nada mais era do que uma atitude defensiva do médico pressionado pelos advogados do seguro profissional a evitar o protagonismo e, com isso, reduzir o risco de ser processado. Ou, em outras palavras, omitindo-se de ser médico deve haver menos risco de ser demandado porque, afinal, ele nem o foi.

O desfecho de tudo o que é insano não tem limites. Depois do esperado enrijecimento da relação médico paciente, a indústria da judicialização não para de crescer, agravada por algumas sentenças ensandecidas: recentemente, um juiz americano deu ganho de causa a um paciente que acionou seu cirurgião porque removeu um tumor de bexiga encontrado fortuitamente durante uma operação para tratar de um cálculo encravado no ureter. 

Quando saiu do hospital, parecia feliz e agradecido. Tempos depois, a gratidão (geralmente frágil) cedeu lugar à ganância (sempre poderosa) e o paciente processou o médico porque gostaria de ter sido consultado sobre a retirada do tumor que, afinal, era uma propriedade dele e, portanto, com direito de dar-lhe o destino que lhe aprouvesse. Tão maluca quanto a reivindicação foi a decisão judicial que deu ganho de causa ao paciente. Ao incauto doutor, afeito a resolver problemas e agora impossibilitado de devolver-lhe o tumor, só restava ressarcir o paciente por danos morais, visto que o pobre infeliz fora privado, por pura precipitação médica, de um câncer, pelo qual, aparentemente, nutria grande afeto e estima.

Nesse ritmo, cada vez mais se dará razão a Einstein quando reconheceu que "duas coisas eram infinitas: o universo e a estupidez humana". Mas em relação ao universo, ele ainda não tinha certeza absoluta!

J.J. CAMARGO