sexta-feira, 14 de junho de 2019


14 DE JUNHO DE 2019
DAVID COIMBRA

Pais de meninas

Homens, quando se tornam pais de meninas, tornam-se outros homens. Refiro-me, óbvio, aos que exercem a paternidade. Aos pais praticantes, que cuidam e se preocupam. Esses, muitas vezes, passam a olhar com aflição o mundo masculino do qual faziam parte antes de a filha nascer. Não raro, a preocupação é exagerada, mas é interessante que se veja a vida sob outra perspectiva.

Há homens que se renovam e se suavizam com a paternidade. Mas há os que se deixam empedrar. Olhando assim, a distância, parece ser o caso do sujeito que matou a tiros o ator de Chiquititas e seus pais, em São Paulo.

Se você não sabe o que aconteceu, explico. Trata-se do drama shakespeariano clássico: o ator namorava uma moça e o pai dela desaprovava o relacionamento. O namorado convocou seus próprios pais para ir à casa da menina, provavelmente para demover o pai dela da oposição ao namoro. Mas o pai reagiu assassinando os três. A moça, arrasada, disse que ele cometeu o crime "por ciúme".

Isso tudo é muito antigo, tanto que nem parece verdade. Lembrou-me Bilac. Nesta semana, escrevi sobre Olavo Bilac. Como você sabe, ele morreu há mais de cem anos. Seus costumes, portanto, eram do século 19: vestia sempre terno e gravata, usava pince-nez e encerava cuidadosamente as pontas do bigode, antes de torcê-las para cima. De ideias, porém, era mais avançado do que o Brasil da época. Por exemplo: defendia ardorosamente a abolição da escravatura.

Um dos bons amigos de Bilac era o abolicionista José do Patrocínio, eles gostavam de ir juntos à Confeitaria Colombo de dia e, de noite, a outras casas menos comportadas da noite carioca. Uma vez, Patrocínio, a quem chamavam de Zé do Pato, foi à França e de lá trouxe uma novidade estonteante: um automóvel a vapor. O Rio de Janeiro inteiro ficou agitado com a geringonça.

Num domingo de sol, Zé do Pato convidou Bilac e outros amigos para andar de automóvel. Só Bilac, corajoso, topou. Mais até: pediu para dirigir. Zé do Pato ensinou-lhe os princípios básicos de direção, depois do que Bilac postou-se atrás do volante e arrancou. Zunindo a cinco quilômetros por hora, colidiu com uma árvore, provocando, assim, o primeiro acidente automobilístico da história do Brasil.

Bilac foi um pioneiro. Mas não em termos comportamentais. Prova-o o amor da sua vida. Ela se chamava Amélia de Oliveira e vinha de uma família de versejadores parnasianos - Alberto, um dos irmãos de Amélia, foi, inclusive, um poeta de certo sucesso.

Alguns inimigos de Bilac espalharam que ele era homossexual, mas devia ser intriga, porque seu amor por Amélia era muito devotado. Quando noivaram, ele escreveu assim para um dos irmãos dela, Luiz:

"Participo-te que sexta-feira passada, 11 de novembro de 87, às 2 horas e 35 minutos da tarde, ficou sendo minha noiva tua irmã Amélia. Minha noiva, leste bem? Minha noiva! É a primeira vez que escrevo estas duas palavras. Minha noiva! Como estou feliz! Como é bom viver! Como é bom amar e ser amado!".

Não é lindo? Ah, deveria ter escrito essa crônica no Dia dos Namorados.

Só que essa história de amor terminou mal, e os motivos foram os mesmos que, no domingo passado, provocaram a tragédia do jovem ator apaixonado de São Paulo: a oposição da família da namorada. Bilac nunca conseguiu se casar com Amélia, mas nunca a esqueceu e nem ela a ele. Essa história fica melhor, acredite. Eles são o Romeu e a Julieta brasileiros. Vou contar mais amanhã. Antes disso, antecipo que Bilac, na falta de Amélia, tinha de se consolar com o amor a soldo. Veja os versos em que ele lamenta ter cedido aos desejos da carne e se inspire para a noite desta sexta-feira:

"Viver não pude sem que o fel provasse

Deste outro amor que nos perverte e engana.

Porque homem sou, e homem não há que passe

Virgem de todo pela vida humana.

Porque tanta serpente atra e profana

Dentro da alma deixei que se aninhasse?

Porque, abrasado de uma sede insana,

A impuros lábios entreguei a face?

Depois dos lábios sôfregos e ardentes

Senti, duro castigo aos meus desejos,

O gume fino de perversos dentes

E não posso das faces poluídas

Apagar os vestígios desses beijos

E os sangrentos sinais dessas feridas!"

DAVID COIMBRA

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