sábado, 22 de junho de 2019



22 DE JUNHO DE 2019
PAULO GLEICH

BRINCANDO DE GÊNERO

Aos quatro anos de idade, a filha de um casal de amigos anunciou aos pais que não era mais uma menina, e sim um menino - Jorge. A mãe, intrigada com a súbita mudança, tentou em vão entender o porquê: era porque sim! Ante a insistência da pequena, acabou cedendo e entrou na brincadeira: passou tratá-la como ela reivindicava. Aquela fantasia durou algumas semanas, até que, algum dia, sem estardalhaço, ela "voltou" a ser menina.

Minha amiga relatou o episódio da forma que pais contam, espantados e divertidos, as peripécias de seus pequenos. Elogiei sua postura, pois ela entendeu que aquilo era algo importante para a filha, porém não se precipitou em tirar nenhuma conclusão daquela súbita "mudança", nem levá-la a sério demais. Assim, permitiu que sua filha brincasse com uma questão muito séria: a tentativa de compreender o mistério da diferença sexual e a pertença a um gênero.

A maioria de nós nasce com um genital que define a que sexo pertencemos. Mas isso por si só diz pouco sobre nosso destino como homens ou mulheres: é a acolhida dessa diferença pelos pais e pela sociedade que vai definindo como nos situaremos em relação a essa questão. Nossa programação instintiva é, diferentemente de outros animais, insuficiente: precisamos buscar fora de nós mesmos elementos para construir a resposta à pergunta sobre o que é pertencer a um gênero.

Freud denominou essa condição inicial do ser humano de bissexualidade, afirmando que somos muito plásticos no que diz respeito à identidade e ao desejo sexual. Que nos identifiquemos como homens ou mulheres (ou outro gênero) é resultado de um longo processo, iniciado na primeira infância, quando fantasias e brincadeiras tentam dar conta desse enigma. Não é por algo inato que a maioria das meninas brinca de princesa e os meninos, de super-herói: essas são imagens de mulher e de homem oferecidas pela cultura.

Atualmente, essas identidades têm sido um pouco mais flexíveis do que em outras épocas, quando qualquer expressão considerada do sexo oposto era duramente repreendida. Frases como "menino não chora" ou "isso não é coisa de menina" enclausuravam os sujeitos em ideais e comportamentos rígidos, impossibilitando identificar-se com atributos de ambos os gêneros. Além de não levar ao "bom caminho" da heterossexualidade, essa violência acaba com frequência gerando ódio ao sexo oposto.

Se hoje é socialmente mais aceito que crianças brinquem livremente com questões de gênero, persiste um equívoco semelhante ao de tempos atrás: as fantasias e brincadeiras das crianças são, com frequência, tomadas como signos definitivos de sua sexualidade, antes mesmo que algo esteja definido. É preciso escutar e respeitar as crianças, mas também ter em vista suas limitadas condições de dizer e decidir sobre quem são e o que desejam.

A fantasia e a brincadeira (que é uma fantasia encenada) são meios privilegiados que as crianças têm de lidar com o complexo e confuso mundo dos adultos e com os grandes enigmas da existência, que se colocam para elas muito cedo: o sexo, a morte, os sentimentos e as relações entre as pessoas. Permitir às crianças brincar e fantasiar com questões de gênero é entender que isso é algo bom e necessário para seu crescimento; definidor, mas não definitivo. Não suportar que isso aconteça talvez diga do quão pouco os adultos puderam (e podem) brincar com essa questão.

PAULO GLEICH

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