sexta-feira, 28 de junho de 2019



Jaime Cimenti 
Clarice misteriosa e autobiográfica 

Boa parte dos estudiosos, professores e leitores consideram Água viva como a obra mais misteriosa e autobiográfica da genial escritora Clarice Lispector (1920-1977). O "denso e fluente poema em prosa" da autora de Perto do coração selvagem; Laços de família e A hora da estrela foi publicado pela primeira vez em 1973. Clarice, como se sabe, faz parte da terceira fase do modernismo no Brasil, ao lado de nomes como Lygia Fagundes Telles, entre outros. A nova edição de Água viva (Rocco, 224 páginas, R$ 64,90), encadernada e com bela sobrecapa, faz parte do projeto da Rocco de publicar edições especiais das obras de Clarice, reproduzindo os manuscritos e datiloscritos originais. 

Este volume conta com importantes textos de referência, assim como a carta do filósofo José Américo Pessanha, que motivou a troca do título da obra de Objeto gritante para Água viva. A narrativa vem acompanhada dos ensaios de Alexandrino Severino, Sônia Roncador, Ana Claudia Abrantes e Teresa Montero. O prefácio e a organização do livro ficaram a cargo do crítico e pesquisador Pedro Karp Vasquez, e a concepção visual e o projeto gráfico são de Izabel Barreto. 

Nesse pequeno grande livro, Clarice fala da vida, de instantes e, acima de tudo, a autora conseguiu um jeito transformador de escrever sobre si mesma. Não há enredo, começo, meio e fim e Clarice desconstrói a linguagem, motivando um impacto semelhante ao que causou quando estreou na ficção com o premiado Perto do coração selvagem, em 1943. "É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano de dor e separação mas é grito de felicidade diabólica. 

Porque ninguém me prende mais." Assim se inicia a narrativa hibrida que mescla poesia, ensaio, ficção e que apresenta absoluta insurreição formal e uma desestruturação da forma romanesca, marcada por uma grande fluidez, com ares de aparência inacabada e inconclusa. Um trabalho em andamento, uma obra em progresso, que convida o leitor a nadar em águas que se movem infinitamente. 

A síntese de Almodóvar? 

O filme Dor e glória (Dolor y gloria), o vigésimo primeiro do grande diretor espanhol Pedro Almodóvar, está em cartaz em Porto Alegre. 

A película vem fazendo, merecidamente, sucesso de público e de crítica em vários locais do mundo, sendo que foi premiada no último Festival de Cannes, com a Palma de Ouro para Antonio Banderas, como melhor ator, por sua atuação terna, comedida e densa. Alguns afirmam que este é o melhor trabalho de Almodóvar, outros criticaram o filme pela falta de enredo e outros problemas, mas a maior parte dos críticos e do público consagra o filme. Acho perda de tempo discutir se este é o melhor filme de Almodóvar ou aquele outro é o melhor trabalho de Woody Allen. 

Mania que temos de fazer listas e colocar alguém ou algo no topo, como se a vida fosse uma corrida de cavalos ou um concurso de misses. Filmes, livros, obras de arte são como filhos e é complicado falar em obras-primas. 

O futuro às vezes nos desmente. Alguns falaram que o filme é a "síntese" dos trabalhos do espanhol, mas sem tanta vida, tanto absurdo e tantas cores que estão nos outros. Acho que não é nada disso. Dor e glória traz muitos elementos presentes em outros trabalhos da longa carreira de Almodóvar, mas nem todos. 

A narrativa do diretor de cinema em decadência, que vai revisando suas dores e glórias, seus ganhos e suas perdas, seu presente e seu passado, envolve o expectador de cara e o carrega para um universo muito próprio, onde a memória, a sensibilidade, os desejos e os sentimentos estão presentes. 

Na memória as coisas acontecem muitas vezes, quem não sabe? Não há duvida de que se trata do trabalho mais íntimo e autobiográfico de Almodóvar e aí não interessa muito saber até que ponto o drama traz os acontecimentos de infância, juventude e vida adulta do diretor ou até que ponto lembra outros filmes de sua autoria. O que importa é a excelência do filme, a sensibilidade, a delicadeza e o equilíbrio entre as dores e os prazeres, se que é isso existe. 

O menino é o pai do homem, disse o poeta inglês Wordsworth e a vida é uma graça triste, dizem muitas pessoas, com razão. Dor e glória faz lembrar as frases e com sua tristeza bela, mostra que sempre é possível desatar alguns nós, superar dificuldades, esquecer, sentir, perdoar e amar. O filme nos faz constatar que esse velho mundo gira, com nossos afetos e desafetos, com as lembranças boas e ruins e que há espaço para a conciliação, a redenção e um novo olhar sobre o sol que nasce ou a lua que nos faz sonhar utopias. 

O fato do filme não contar com um enredo ou com uma estrutura definida, pode ser visto como qualidade ou defeito, a critério de cada um. Mas não é assim a vida, sem ensaios, sem roteiros e sem prorrogação depois do fim do jogo? Quem disse que filmes, livros e outras obras de arte necessitam, obrigatoriamente, de regras e receitas de bolo? - 

Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2019/06/690558-clarice-misteriosa-e-autobiografica.html)

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