quarta-feira, 20 de maio de 2020



20 DE MAIO DE 2020
MÁRIO CORSO

O paladar do afeto

Tenho um paciente que, quando a esposa viaja, faz seu prato favorito: miojo com sardinha. Não há o que o faça mais feliz. Reclama que nenhum restaurante serve seu manjar. Sabe que a escolha evoca a infância e é esquisita. Percebe que é um prato para quando está só. Salvo no aniversário, quando a esposa faz para os dois a sua versão de miojo com sardinha.

Explica que o pai fazia essa massa para ele na infância. Quando recém separado, o pai era um trapalhão na cozinha.

Em um jantar com o pai, a esposa comenta o fato. O sogro mareja o olhos e conta a sua versão da história. Fora a pior época de sua vida. Quando a falência da firma da família se anunciava, o casamento que já não ia bem acabou. Sentiu-se, além de abandonado, que era amado pela carteira.

Devia para todos e perdeu o crédito. Na primeira visita do filho a seu novo apartamento, não havia nada para preparar o almoço. Juntou umas moedas, dessas que esquecemos pela casa. Mas só conseguiu comprar miojo e sardinha.

Habituado a sair para comer fora, tapou-se de vergonha em servir para o filho tal improviso. Não lembra como o pequeno reagiu. Recorda que passaram o resto do dia no videogame.

Foi tão doído e marcante o episódio, que ele jamais repetiu. Passava longe de miojo. Os almoços de domingo eram tradicionalmente pão com molho feito com carne moída. Prato ainda simples, porém mais sofisticado do que o anterior.

O filho lembrava como se tivesse sido uma série o que fora apenas um episódio. Estava pasmo, mas não tinha como duvidar da memória do pai.

Eu lhe disse que, com a aprovação entusiasta de uma comida tão simples, ele fizera um gesto de amor. Um ato que continuou repetindo-se cada vez que a massa e a sardinha mostravam sua perfeita comunhão. O prato restituiu o valor que aquele homem entristecido julgava perdido.

Um pai é também forjado pelo discurso da mãe. Para aquela mulher, a falência havia destituído o marido dos encantos. Para o filho, o paladar foi a via de expressão de um afeto altruísta, aceitou seu pai como ele era: frágil e falível. Implicitamente disse que estaria com seu pai na riqueza e na pobreza, como sua mãe não o fez.

Não era a lembrança de um prato. O prato era o signo da cumplicidade com o pai. As memórias que guardam os afetos mentem para dizer outra verdade.

MÁRIO CORSO

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