sábado, 10 de outubro de 2015



11 de outubro de 2015 | N° 18321 
L.F.VERÍSSIMO

O pior


Eu quis beijar seus pés e você não deixou. Pior: disse “Eca”. Seria um sinal da minha devoção, mas você disse “Eca”. Explicou que os pés estavam sujos de areia, uma nojeira. Eu sabia que os amores de verão não duram mais do que a marca do maiô, mas imaginei que o nosso seria diferente e perduraria mais do que nosso bronzeado. Eu lamberia a areia da praia e o sal do mar dos seus pés e você me puxaria pelas orelhas e me beijaria a boca salgada, mas você não me puxou pelas orelhas, você disse “Eca”. 

Quando nos encontramos meses depois, por acaso, eu perguntei se você ainda tinha aquela concha que eu lhe dei na praia para nunca me esquecer e você deu um tapa na testa e disse “Ih, esqueci”. Aquela concha com a minha vida dentro. Eu sei, eu sei, meu coração também não caberia na sua mochila. Imagino que ele esteja numa gaveta, junto com o protetor solar número 3, o Harry Potter e outros detritos do verão. 

Quando nos encontramos, pedi meu coração de volta e você deu outro tapa na testa e disse “Ó cabeça” e depois disse “Desculpe, viu Renato”. E isto não foi o pior. Nos encontrarmos meses depois por acaso, não como tínhamos combinado, também não foi o pior. Nada do que combinamos naquela noite na praia, sob aquela lua, com aquela lua nos seus cabelos, com seus cabelos fosforescendo sob aquela lua, nada do que combinamos naquela noite sob aquela lua aconteceu, e isso também não foi o pior. Eu sei, eu sei, eu não esperava que nossos planos dessem certo, nossos grandes planos. 

O plano de não voltar para a escola no fim do verão e ir para os Estados Unidos, cada um com o seu sonho e o seu inglês do Yázigi, e dar duro e ser feliz e só voltarmos famosos, você como artista e eu, sei lá, como o melhor entregador de pizza do mundo, ou o plano de nos casarmos ali mesmo, o luar como grinalda, a espuma do mar como testemunha, a concha em vez de um anel e ninguém ficar sabendo, ou viver juntos numa cobertura com piscina se nossos pais pudessem pagar, ou o plano de nunca, nunca, nunca nos separarmos. 

Se os nossos grandes planos não dessem certo, pelo menos os planos menores dariam, como a data certa para nos reencontrarmos no fim do verão. Eu esperava que pelo menos isto você não esquecesse, mas você esqueceu. Tudo bem, o pior não é isso. Nos encontramos por acaso, meses depois, com o bronzeado desbotando, e você disse “Desculpe, viu Renato”. 

Pensei em dizer tudo bem, quem precisa de um coração enganado, mesmo? Fique com ele, plastifique, use como centro de mesa, quem se importa? Eu entendo você não me deixar beijar os seus pés. Entendo o “Eca”. Entendo você ter esquecido a concha, o luar, os planos. Nada mais ridículo do que um homem apaixonado, eu sei, eu sei. Você tinha razão, beijar seus pés seria um exagero romântico, um rompante embaraçoso, além de anti-higiênico. Mas o pior também não é isso. O pior, o que dói, e doerá por muitos verões, é que meu nome não é Renato.