sábado, 10 de outubro de 2015



11 de outubro de 2015 | N° 18321 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

O mistério do parnasianês

Dei de cara com uma verdade estranha, esses dias: a visão escolar dominante sobre o que é certo e errado, no campo da língua materna brasileira, tem uma força desproporcional à história transcorrida Não deu pra entender direito? Vou de novo: o modo como temos concebido o ideal da língua portuguesa, na escola e no mundo letrado, nasceu há uns cem anos e sobreviveu a impressionantes forças históricas contrárias. Como? Por quê?

Simplifico para caber no espaço: o português que a escola brasileira ensinou e perpetuou, desde cem anos atrás até há pouco, brotou no mesmo jardim do Parnasianismo, aquele modo neoclássico de fazer poesia, que adorava o soneto como molde excelso (e gostava de usar “excelso”, aliás) e era capaz de matar para falar de amenidades – e para evitar falar da vida real, cotidiana.

Suor, sexo, carnaval, dureza da vida diária, esgoto a céu aberto, nada disso ganhou direito de entrar na poesia parnasiana. Fosse o poeta parnasiano um qualquer, um deserdado, um marginal, o problema seria pouco; mas ocorreu que foi justamente o poeta parnasiano – Olavo Bilac à frente – quem foi tomado como modelo de língua para todos. Não por acaso, Bilac foi inspetor federal do ensino, e nessa condição percorreu muitas cidades, fazendo conferências e espalhando seu charme conservador Brasil afora. E mais ainda: autor da letra do Hino à Bandeira, escritor de livros infantis e didáticos, foi eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros – isso sendo ele, ao que consta, um fervoroso republicano.

Bilac foi beneficiado por outros fatores, em sua entronização como modelo de texto. Em 1897 começou a funcionar a Academia Brasileira de Letras, órgão que veio a ter imensa importância ao protagonizar as várias discussões sobre reforma ortográfica. Ao longo do tempo, a Academia teve papel forte na perpetuação da visão parnasiana do português. (Machado de Assis também compõe esse momento, com seu texto elegante e preciso, que nada tem a ver com a chatice bilaquiana. Quem sim tem a ver com ela é Ruy Barbosa, outra mala no campo da linguagem conservadora e arrebicada.)

Mas o que me chamou a atenção foi comparar essa trajetória com os elementos contrastantes que pelo contrário se expressavam em variantes coloquiais da língua. Acompanhe comigo no riplei: na mesma época do Bilac, gente como Simões Lopes Neto e Valdomiro Silveira escrevia contos e lendas do mundo rural; Lima Barreto escrevia sua vasta, irregular mas viva obra literária; em seguida, anos 20 em diante, o rádio começa a atuar, dando cancha à canção popular, que em geral se expressa na língua da vida real.

No campo letrado, houve o Modernismo paulista, que se esforçou em combater justamente a “máquina de fazer versos” do Parnasianismo. Nos anos 30, toda uma geração de grandes talentos escreveu em português brasileiro suado, os Erico Verissimo, Graciliano, Jorge Amado, os Bandeira e Drummond, e logo depois veio Nelson Rodrigues para ensinar o teatro a falar sem sotaque lisboeta ou vocabulário pernóstico. E veio a televisão, com a telenovela que, a partir de Beto Rockefeller, incorporou a fala brasileira.

Então eu quero saber é como o parnasianês se manteve. Que forças o apoiaram este tempo todo, até sua morte – ainda não totalmente configurada –, que só agora vai ficando clara?

A tradição de haver pouca escola, a escola para poucos, é parte da explicação. A universidade para menos gente ainda, da mesma forma. O bacharelismo, o “data venia”, a força conservadora e excludente do mundo do Direito por certo ocupa papel forte nisso. Para completar, a visão que temos do Brasil como país de um povo burro e incompetente – quadro que se agrava ainda hoje, com o afloramento da corrupção disseminada, à direita e à esquerda, existente desde sempre.

Visão equivocada, que abomina nossas mestiçagem e capacidade de criar soluções. Visão que mal agora começamos a reverter, mas que ainda nos paralisa.