segunda-feira, 25 de janeiro de 2016



25 de janeiro de 2016 | N° 18425 
L. F. VERISSIMO

Scola aqui


Minha mulher consegue conversar com qualquer um. Até comigo. Língua não é problema. Ela teve italiano suficiente para contar ao Ettore Scola, em Porto Alegre, que tínhamos sido vítimas de um dos “feios, sujos e malvados” do seu filme com este nome, em Roma. Andávamos pelo Trastevere, enlevados, pré-saboreando o almoço que comeríamos dali a pouco, quando passou um “scippatore” de Lambretta saído do filme do Scola e levou a bolsa da Lucia com tudo dentro.

“Tudo” mesmo. Nossa viagem estava naquela bolsa: passagens, passaportes, dinheiro, cheques. Com as últimas liras que eu ainda tinha num bolso pagamos um táxi até a embaixada brasileira na Piazza Navona. O setor de socorro a brasileiros “scippatados” da embaixada só abriria depois do almoço. Sentamos num banco da praça, desolados. Nunca a beleza de um lugar foi tão desperdiçada como a beleza da Piazza Navona em nós, naquela manhã. Na embaixada, fomos tratados simpaticamente, e ninguém perguntou o óbvio: de quem tinha sido a brilhante ideia de carregar “tudo” numa bolsa, ainda mais no Trastevere?

Estávamos em 1977. Tempos de ditadura no Brasil. Passaportes brasileiros eram valorizados por refugiados políticos, substituí-los levaria tempo. Mandarem dinheiro do Brasil para nos salvar também era complicado. O que fazer? Esta história tem um final feliz que compensa todo o resto. Da embaixada telefonam para o Araújo Netto, correspondente do Jornal do Brasil em Roma e contam o que nos aconteceu. 

Marcamos um encontro com o Araújo e a Maria Eunice numa pizzaria perto do Pantheon, naquela noite. Nunca tínhamos nos visto antes e tornamo-nos amigos de infância instantaneamente. O Araújo e a Maria Eunice nos levaram para seu apartamento e, literalmente, nos adotaram. Até hoje me emociono quando lembro aquele mês que ficamos com eles e suas meninas. Há “scippatadas” que vêm para o bem.

Claro que a Lucia não contou tudo isto ao Scola. Eu só contei aqui porque queria lembrar o Araújo e a Maria Eunice, nós que nos amávamos tanto. O Scola estava no Brasil, a convite da Casa de Cinema de Porto Alegre, e comeu um churrasco conosco. Não me lembro se pediu desculpas à Lucia pela ação do seu personagem de Lambretta.