quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Cova Rasa..

Eu nunca consegui entender o apego das pessoas a bens materiais, a status, tanta mania de grandeza e poses. Não tenho ciúme de coisas, nem de pessoas. Tenho cuidado. Se eu não cuidar das minhas coisas, vou ficar sem o que me custou pra ter. Então cuido. Tenho um agarramento muito forte com minha filha, e algumas pessoas confundem isso com ciúme. Talvez seja, mas eu prefiro chamar de cuidado, somente. 

O apego é algo doente. Quem tem apego vive cativo, amarrado no pé da cama, não doa, não entrega, não se desfaz nem do que faz mal. Não estou dizendo que devamos entregar nosso carro nas mãos dos outros para parecermos legais nem parceiros. Nem que tenhamos obrigação de emprestar nossas coisas de valor pra que o outro não se ofenda. É tão difícil ter alguma coisa hoje em dia, não dá pra bancar o boa praça o tempo todo. Quando falo de apego, falo de não fazer o bem por egoísmo. Falo de não dividir. Na minha casa eu faço o melhor pela minha visita. É uma questão de educação, de bons modos. Eu trato bem quem está debaixo do meu teto, sem reservas. Só não dou o que não tenho, o que não posso. Não podemos ser hipócritas de tirar a roupa do corpo, ficar sem, e no dia seguinte ficar reclamando por ter dado, se mostrar arrependido. Tem que ser de coração, com prazer. Sem esperar nada em troca. 

Minha ficha sobre esse lance de apego caiu de vez há mais ou menos oito anos, com a morte da minha avó. Eu cresci com ela, sabia de tudo o que ela tinha. Ela era muito generosa, ajudava quem podia, conseguiu muita coisa ao lado do meu avô. No dia de sua morte, quando minha irmã disse que ela mesma vestiu minha avó pro velório, eu entendi tudo. Ela tinha tudo, e não tinha nada. Precisou que alguém a vestisse para ser sepultada, caso contrário, desceria à sepultura do jeito que veio ao mundo: nua. Eu entendi que roupa, casas, carros, jóias, não tinham valor. Ali, no caixão, só cabia ela e sua história de vida. Só havia espaço para nossa saudade e tudo o que aprendemos com ela. Entendi que até depois do último suspiro precisamos de ajuda, precisamos que nos cubram, precisamos uns dos outros. 

Uma coisa eu puxei da minha mãe: ela é simples, vive com muito pouco. Não por não ter ambições na vida, mas por saber viver com o que tem. Ela sempre me dizia quando eu era menina que “dignidade é não andar sujo e nem rasgado”. Eu levo isso comigo até hoje. Não faço questão de roupas de marca, não me apetecem luxos, altos patamares não me seduzem. Luxo para mim é ter contas pagas, ver minha filha numa boa escola, ter comida na mesa e saúde. Se tiver que dormir no chão, durmo. Se tiver que andar a pé, ando. Vejo gente que não dá carona pra não sujar o tapete do carro, mas não lembra que nasceu sem ele e que não vai levá-lo junto para a cova. Foi abençoado com um carro? Não precisa emprestar pro amigo, mas pode ajudar quem está vindo com a bolsa pesada do supermercado. A coisa está tomando a frente da pessoa. O ter é melhor que ser. 

Quando você coisifica a vida, você é enterrado nu de reciprocidades. Quando você tem, mas não é, o que vão ficar são tuas coisas, não teus valores como ser humano. Quem nunca aprendeu a dividir, vai acabar farto de solidão. Quem valoriza status em vez de pessoas, terá para sempre a companhia do que nunca doou. Tua sepultura pode ter luxo, vasos finos, flores frescas, mas lá dentro só caberá você. Contra isso não há nada que você possa fazer. Nem sete, nem mil palmos, acomodarão o que você deixará aqui fora.

Quando minha avó morreu, eu entendi que em sepulturas só existe espaço pra mesquinhez, arrogância e apego. Teu carro, tua grife e teu status não caberão lá na outra banda. Porque do lado de fora vamos deixar aqueles a quem nos doamos, gargalhadas compartilhadas, perdões oferecidos, orgulhos engolidos, defeitos relevados. Do lado de fora vão ficar nossos tesouros repartidos com quem sempre contou com a gente: gratidão, saudade e afeto. Mais nada.