sábado, 23 de janeiro de 2016


24 de janeiro de 2016 | N° 18424 
MOISÉS MENDES

Segredos e silêncios


Jornalistas cometem, por insegurança, o engano de pensar que o debate de seus afazeres deve ficar só entre eles, na redoma morna do corporativismo. É como se fossem curandeiros detentores de sabedorias que ninguém mais pode dominar.

A internet ajudou a abalar essa ilusão. O jornalismo é assunto de interesse geral, como toda atividade com alguma exposição pública – a política, a engenharia, a arquitetura, a gastronomia, a funilaria e as religiões e suas promessas de transcendência e suas aberrações.

Spotlight – Segredos Revelados é o filme definitivo para provar que o jornalismo sempre foi tema de interesse de todos, também por seus dilemas, suas imperfeições e remissões. Pois Spotlight é um filme sobre a grande chance da remissão, antes de ser mais uma história sobre atos heróicos da imprensa.

A história contada é o desvendamento dos casos de pedofilia na Igreja Católica pela equipe de repórteres investigativos, a Spotlight, do jornal The Boston Globe. É um belo exemplo de como o jornalismo pode se redimir de erros que não são pontuais nem casuais.

Alerto a quem ainda não viu o filme que vou abordar alguns detalhes, mas nada que tire surpresas. O primeiro: a valente equipe de jornalistas ignorava, havia pelo menos três anos, uma sucessão de alertas e indícios de que a pedofilia era mal disseminado entre os padres de Boston.

O que os repórteres descobrem, sob o impulso do novo diretor de Redação, é a mais aterradora realidade envolvendo religiosos desde a Inquisição. A Igreja apodrecia com os padres que abusavam de crianças, e ninguém fazia nada. Nem a imprensa.

O acobertamento se disfarçava em distanciamento. O jornalismo refletia o comportamento de uma comunidade conservadora, fechada em si mesma e aparentemente perfeita, com subúrbios em que as crianças andam de bicicleta no meio da rua. Os cardeais, os padres, as famílias, os advogados, a Justiça, os políticos, a moral, tudo e todos recomendavam o silêncio. Até que o novo diretor do Boston Globe determina: não foquem apenas nos padres, mas no poder institucional que camufla o horror.

Trazido para o Brasil, o roteiro poderia ser adaptado ao que se passou com a corrupção graúda das empreiteiras. Durante décadas, o jornalismo dedicou-se, repetitivo, a criminalizar os políticos (foi assim que Maluf folclorizou a corrupção) e a tratar com displicência os chefões corruptores.

O senador Pedro Simon chegou à exaustão no Congresso tentando instalar a CPI das Empreiteiras. O promotor Sílvio Marques procurava enquadrar Maluf como quadrilheiro, para pegar também as empresas que o usavam para superfaturar obras. E a imprensa batia nos políticos, quase só nos políticos.

Como fazia a igreja bostoniana, os gângsteres das empreiteiras nos mantiveram entretidos com malufs e similares, enquanto prosperavam impunes como modelos exemplares do nosso liberalismo econômico. A sensação de que só nos últimos anos os empreiteiros “ficaram” corruptores sobreviveu até aqui por conta do esforço de negação da realidade.

A falha do Boston Globe e de todos os outros jornais não era pontual. Assim como não foi pontual, no caso brasileiro, a omissão com os corruptores. Era da lógica do silêncio de todo o sistema.

O jornalismo brasileiro terá a grandeza da equipe Spotlight se admitir, com a transparência que cobramos de outras áreas, que foi pelo menos obsequioso, por décadas, com os cardeais das empreiteiras – apesar dos alertas, dos indícios e das provas de que eles manipulavam a política, dominavam governos, repartiam obras, superfaturavam e corrompiam.