sexta-feira, 29 de janeiro de 2016


29 de janeiro de 2016 | N° 18429 
MARCOS PIANGERS

Voto de riqueza


Meu carro favorito foi, com certeza, aquele Clio vermelho duas portas que comprei assim que minha primeira filha nasceu. Paguei em 48 vezes e lembro do dia em que atrasei uma prestação e ela quase dobrou de valor. Foi um dia triste. Mas o carro era maravilhoso, sem vidro elétrico, sem trava, sem alarme. Não tinha ar-condicionado e, no verão, eu dava graças a Deus porque a borracha da porta estava estragada e entrava um ventinho pela fresta. Um vento quente, mas era um vento.

Eu gostava do carro porque ele era confortável e a manutenção era quase desnecessária e porque foi o carro que comprei quando minha primeira filha nasceu, esse momento cheio de alegria e esperança. Comprei pra que ela tivesse mais conforto e segurança, percebam que meu carro anterior era muito pior. 

Com o tempo, ficou óbvio que meu conceito de conforto e segurança era equivocado, e me lembro de quando, aos três anos, minha filha viu uma propaganda de um carro grande, aquelas propagandas em que os carros grandes estão subindo montanhas e andando em ruas vazias pelo centro da cidade. A menina viu aquilo e disse “Gosteeeei” e eu percebi que tinha que trocar de carro, por outro com mais espaço e menos afeto.

E este terceiro carro (a quem eu quero enganar?) foi a minha mulher que escolheu, um carro mais alto e mais fácil de estacionar, e acho que pode ser considerado um desses carros que os homens chamam de “carro de mulher”. Fico tranquilo com relação a isso. Sinto falta, apenas, daquele meu carro velho, daquele câmbio de marcha descascado, as manivelas da porta quebradas, o banco de trás com bala e Fandangos jogados. 

Me dá uma saudade da reação das pessoas quando me viam dentro daquele carro velho. Os que não vão com a minha cara comemoravam a dificuldade financeira. Os que gostam de mim identificavam-se com a batalha. Acredito que era um carro que melhorava o dia de todo mundo.

Acima de tudo era uma lembrança diária de humildade. Era uma prova de que eu poderia viver com muito pouco, de que as coisas materiais não são importantes, de que só precisávamos uns dos outros para ficar bem. 

Em um mundo em que os carros ficam cada vez maiores, ocupando cada vez mais espaço em avenidas já lotadas, aquele carro velho me lembrava das coisas que realmente importam na vida, todas elas mais baratas do que um carro novo. Não era um voto de pobreza, era um voto de riqueza. Uma riqueza de espírito que quero me lembrar pra sempre de ter, independente do tamanho do meu carro.