segunda-feira, 31 de dezembro de 2018


31 DE DEZEMBRO DE 2018
ROSANE TREMEA

Ano-Novo, ainda Natal


Se fosse possível, viveria sempre numa manhã de Natal. Numa manhã de Natal, com uns cinco ou seis anos, comi o pé do Menino Jesus. Como eu poderia imaginar que não era um doce de açúcar, um marzipã, aquela figura do nosso presépio de gesso? Noutra manhã de Natal, com uns cinco ou seis anos, escondi um dos Reis Magos para proteger um gato que decepou-lhe a cabeça ao invadir a sagrada área sob a árvore. 

Por décadas, as duas figuras continuariam no nosso presépio assim, meio prejudicadas: o pequeno Jesus com aquela cicatriz amarelada marcando para sempre a travessura infantil; o Rei Baltasar seguiria seus dias com um colar de cola branca no pescoço negro.

Numa manhã de Natal, uma menininha de uns sete ou oito anos me perguntou, daquele jeito à queima-roupa, se eu ainda acreditava em Papai Noel. E eu, sem titubear, respondi que sim. Ela suspirou aliviada. Ainda bem que acreditava, pois descobrira que a avó tinha dúvidas. E eu suspirei aliviada também: poderia ter sido pior se a menina fosse americana e tivesse ligado para o presidente Trump ao invés de interpelar a avó - a incerteza teria virado desilusão ali mesmo, ao pé da árvore.

Numa manhã de Natal, uma menina de quatro anos, sem dúvidas sobre a existência de Papai Noel, encantada com os presentes que ele lhe havia deixado depois de entrar diligentemente pela lareira, deu-se conta de que só havia pacotes para ela. Pois então ninguém mais naquela sala havia se comportado? Só ela? Todos, flagrados e desmascarados, riram um riso amarelo.

Numa manhã de Natal, sem ter com quem deixar o filho, a mãe carregou o menino de cinco anos para o trabalho. Parecia não haver fantasia ou magia na cena. A criança abandonada pelo pai com meses de idade mal falava. A mãe falou pelas duas. Falou das marcas, nem todas visíveis, de uma vida de sacrifício e abnegação. Do trabalho duro para que, numa manhã de Natal, o menino franzino portasse orgulhoso as sandalinhas tinindo de novas. Não havia magia, mas o amor transbordava daquela fala.

Numa manhã de Natal, outra menina de cinco anos, feliz não pelos presentes, que esses ela tinha bastante, mas pela atenção exclusiva de todos os adultos à volta, que brincavam e riam e se divertiam com ela, suspirou uma frase: "Meu coração está cheio de gente". Um jeito de dizer que se sentia feliz e amada.

E eu pensei que seria bom viver sempre uma manhã de Natal todos os dias do novo ano. Com o coração cheio de gente.

ROSANE TREMEA

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