sábado, 11 de agosto de 2018


11 DE AGOSTO DE 2018
J.J. CAMARGO

SOLIDÃO É RUIM. A DOIS, É PIOR

A companhia de um era desagradável ao outro e nenhum dos dois tinha a menor preocupação em disfarçar. Como aparentemente havia consenso de que aturar em silêncio era mais fácil, calaram.

Uma das filhas lembrava de uma época em que mudanças inesperadas do tempo suscitavam algum comentário, mas depois eles entenderam que tudo se repetia e passaram a odiar os meteorologistas que conseguem, contra todas as forças da razão, demonstrar entusiasmo apesar da monotonia do assunto. E, então, até a possibilidade de tormenta saiu da pauta. Ela tricotava sem parar e, como não fazia sentido debater a alternância de cores na confecção do pulôver, a ausência do diálogo se justificava. Ele, sempre pendurado no cachimbo, lia o jornal de ponta a ponta e sofria mais porque, várias vezes, deparava com notícias interessantes ou estapafúrdias e não comentá-las provocava um sofrimento intenso de introspecção. Precisou de anos para aprender a domesticá-lo. Mas conseguiu, e um sorrisinho de aprovação ou um resmungo de repúdio, ambos quase silenciosos, enterravam a possibilidade cada vez mais remota de interação.

Um dia, ele teve um acesso violento de tosse e foi cuspir no lavabo. Demorou alguns minutos, deu descarga várias vezes e voltou ao Caderno de Esportes. Ela teria sabido que alguma coisa mudara no olhar dele, onde a altivez cedera lugar ao medo. Mas, para isto, ela deveria tê-lo encarado por um tempo incomum, assim como uns dois segundos.

Os acessos de tosse se tornaram mais frequentes e logo caíram na rotina, pois ocorriam sempre durante a cachimbada do meio da tarde. E a rotina, como se sabe, é indispensável na construção da paz dos solitários. Uma tarde, a Amantina, uma servente antiga, veio servir-lhe um cafezinho e comentou assustada: "Mas, seu Miguel, o que é esta mancha de sangue na sua blusa?". Antes que ele abrisse a boca, a justificativa veio do outro lado da sala: "Deve ter se cortado. Bem que eu avisei que tem que botar os óculos para se barbear, mas quem diz que ele me escuta?".

Miguel não conteve um olhar de tristeza e Amantina se afastou em silenciosa cumplicidade: ele deixara a barba crescer havia dois anos. Na semana seguinte, o sangramento se repetiu e a esposa ligou para o filho comunicando a novidade. Teriam combinado que ele devia suspender esses remédios que afinam o sangue e facilitam sangramento. Se o problema persistisse depois de uma semana, ele seria levado ao médico. Tão deprimido que andava, não teve ânimo para comentar que estava escarrando sangue há cinco meses.

Antes de completar a semana de observação, ele teve uma queda no banheiro, foi levado ao hospital em coma e se constatou uma grande lesão no cérebro, com características de metástase. A tomografia de tórax confirmou o pulmão como sede do tumor primitivo, como ocorre na maioria desses casos. Soube da morte do Miguel pelo jornal, procurei na ficha do consultório, e a última revisão tinha mais de cinco anos. Quando liguei para saber o que tinha ocorrido, a esposa foi sucinta: "O senhor acredita que o Miguel, teimoso como uma mula, nunca deixou de fumar? Deu no que deu!". Antes que eu dissesse que não sabia o que dizer, a ligação, por sorte, caiu. Esperei que ela retornasse. Em vão. Eu senti que tinha interrompido o tricô!

J.J. CAMARGO