quarta-feira, 15 de agosto de 2018


15 de Agosto de 2018 | N° 18944
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Desemalando dinheiro


NÃO É FÁCIL distinguir as palavras novas das antigas. Faça o teste proposto e se surpreenda

Professor, um amigo meu usou o verbo bocaberteou (de boca-aberta) para dizer que o irmão tinha sido descuidado com o celular, que terminou sendo roubado no ônibus. Isso é um neologismo, não é? A gente pode inventar palavras para nossa língua? Essa até que eu achei legal? ? pergunta Celso B., estudante de Rio Grande. Pois eu também, Celso; essas brincadeiras feitas com nossa língua são papa-fina para mim, um adicto incorrigível do prazer que as palavras produzem ? mas tenho de informar que essas preciosas criações dificilmente vão fazer parte ativa de nosso léxico. São formações momentâneas, expressivas, adequadas a uma situação muito específica, mas que chamam demasiada atenção por sua novidade e estranheza e não atingem a frequência de uso das palavras comuns. 

Mário de Andrade, por exemplo, brinca maliciosamente com isso: ?a musa sentiu-se farta, bifarta, centifarta, multifarta?; ?estrambólicas, sonambúlicas e não-me-amólicas?; ?o poeta fogo-de-artificiou o Centenário Independentriz e Brasilial?; ?entusiasmo pela ?luso-poetice guerrajunqueiriz e juliodantal (de Guerra Junqueiro e Júlio Dantas) ? tudo isso para falar da obra de um poeta que devemos, pois, ?vaiar, fiaufiauizar, batatizar, ovopodrizar?... Servem para o momento, mas não vingam. Outro Mário, o nosso Quintana, não hesitou em escrever ?Um dia, os padres se desbatinaram? ? um exemplo mais sutil, de maior finura, mas que também morreu ali mesmo.

E já que estamos falando de neologismo, aproveito para mandar um recado, por via indireta, para aqueles que ainda empregam esse termo: de uma vez por todas, deixem de lado esse vocábulo, tão inútil, inexato e anticientífico. Já lembrei diversas vezes nesta coluna que este conceito sempre se afoga nas águas profundas do rio do tempo. 

Como o novo de hoje sempre será o velho de amanhã, o rótulo de ?novo? que dou a um vocábulo não terá valor algum para as próximas gerações, a não ser que haja uma contextualização histórica: na primeira metade do séc. 19, quando Dom Pedrinho II começava seu longo reinado no Brasil, o termo cientista acabava de ser criado na Inglaterra; quando chegamos à República em 1889, o vocábulo apendicite era tido como raro e novo; em 1905, The Spectator ainda pedia desculpas aos leitores pelo uso da palavra intelectual, alegando ser um neologismo consciente.

Para demonstrar o quão precária pode ser a nossa avaliação do que é antigo e do que é recente no idioma, proponho (velho vezo de professor!) um pequeno teste para o amigo. Em cada frase há uma palavra em destaque; assinale as que você colocaria no balaio dos neologismos: (1) ?A PF pediu a ajuda de um banco para desemalar e contar os milhões encontrados no imóvel de Geddel?; (2) ?Era muito desengraçado quando menino, mas tornou-se homem atraente?; (3) ?Em vez de ajudar, a opinião dos pais pode desajudar a noiva?; (4) ?

O camponês desnarigado por um golpe de facão sofreu cirurgia reparativa?; (5) ?O laboratório descontinuou a produção do medicamento sem nenhuma justificativa?. E aí, leitor, quer saber quantas acertou? É muito simples: tantas marcou, tantos erros cometeu. São todas elas palavras velhas, mas bem velhinhas mesmo, que já constavam no empoeirado Bluteau, nosso primeiro grande dicionário, publicado em 1728 ? um pouco antes da fundação da cidade de Rio Grande e do início ocupação portuguesa do território gaúcho. Como dá para ver, as aparências enganam.