domingo, 6 de novembro de 2016




05 de novembro de 2016 | N° 18679
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

AS MARCAS ENCANTADAS

Uma das complexidades das relações afetivas, que justifica o porquê das duradouras serem pouco frequentes, é a necessidade de constante adequação dos personagens, a exigir que as diferenças inevitáveis sejam aparadas para que o convívio siga amoroso. E o preço desta adaptação não pode incluir o sacrifício do prazer de nenhuma das partes, porque isto implicaria, a longo prazo, cobrança e ressentimento.

Na primeira consulta, o Frederico e a Emília formavam um casal de velhos elegantes. Não lembro exatamente o quanto eram, de fato, velhos, mas como eu era muito jovem, aprendi a pensar neles assim. O que me impressionou naquela época era a permanente busca de um pelo outro, como se dar as mãos, por exemplo, fosse uma necessidade vital. E se tocavam sem olhar, como quem tem a certeza de que a âncora de afeto urgente estaria sempre onde devia estar.

O jeito com que ela cuidou dele no pós-operatório foi meio maternal, mas ele não parecia se incomodar com a autoridade dela. Pelo contrário, parecia um bebezão mimoso.

À medida que fomos convivendo, fui me apaixonando pela espontaneidade do afeto e pela inteligência debochada da dupla.

Vinte anos depois, com filhos resolvidos e netos encaminhados, sobraram os dois na casa enorme, com jardim de inverno deslumbrante e uma pilha de nós de pinho suficiente para alimentar duas lareiras em algum inverno canadense.

E, então, o Frederico foi dormir mais cedo, queixando-se de uma dor frontal que atribuiu à sinusite, e nunca mais acordou. Algum tempo depois, tendo o clínico referido que havia alguma secreção pulmonar, ela quis que eu fosse vê-lo. Encontrei-o emagrecido e desfigurado. O homem vigoroso não existia mais, mas ela seguia no comando e, enquanto me contava como tudo tinha ocorrido, alternava gestos de carinho com o cuidado de não permitir que a saliva escorresse da boca de lábios enviesados. Tudo parecia natural, a barba aparada, as unhas feitas e o cabelo grisalho e farto, que ela delicadamente penteava com os dedos finos.

Naquela hora e meia em que ficamos juntos não ouvi uma queixa, só um resmungo com a incompreensão dos filhos que queriam que comprasse um apartamento para ela e colocasse o pai numa clínica, já que não havia nenhuma chance de recuperação.

“Eu sei que a intenção deles é boa, mas não consigo fazê-los entender que, com ele aqui, nesta casa que foi tanto para nós, tenho a única certeza de que a minha vida não terminou. Eu era uma menina boba quando ele casou comigo, e teve uma paciência... 

Tudo o que eu prezo na vida aprendi com ele. Ele era tão generoso que me ensinava o que valia a pena e nem se importava se depois eu fazia pose de intelectual. No máximo, debochava de mim, quando ficávamos sozinhos. O único problema é que, porque nos bastávamos, fomos ficando um pouco isolados, mas eu tento compensar a falta que sinto dele antigo pelas lembranças maravilhosas do que vivemos. E nada disso é tão real quanto estar nesta casa, com os nossos livros e nossas músicas. 

O médico diz que ele não entende nada, mas eu sinto que sim. E, se não, como explicar todas as vezes em que ele chora ao ouvir a Maria Callas cantar Vissi d’arte? Então, eu pego a mão dele, fecho os olhos e me vejo no Teatro Colón assistindo à Tosca, de Puccini. E sou quase feliz outra vez. E quer saber, doutor? Tem muita gente que, mesmo que durasse 200 anos, não viveria metade do que vivemos juntos. Pode parecer egoísmo, mas eu preciso da presença dele aqui para ter certeza de que continuo viva! Por favor, me confirme que não é absurdo pedir ao menos isto.”

Não apenas os traumas deixam marcas definitivas. Os encantamentos também. Felizmente.