quinta-feira, 24 de novembro de 2016



24 de novembro de 2016 | N° 18696 
DAVID COIMBRA

O bauru do Marjan

Nunca mais comi bauru como o do Marjan. O Marjan tinha uma lanchonete ali na Floresta, perto da sapataria do meu avô. Eram muito amigos. Eu visitava o meu avô praticamente todos os dias. Ficava com o cotovelo fincado no balcão, ouvindo suas histórias e vendo-o trabalhar. Ele tomava uma lâmina de couro duro, da espessura de um dedo minguinho, e, usando o sapato que iria consertar como molde, desenhava a lápis a sola que queria extrair. Em seguida, pegava uma faquinha afiadíssima e com ela cortava o couro no formato necessário.

Fazia isso com grande naturalidade e, enquanto fazia, conversava comigo. Contava histórias da História, do futebol, da infância dele. Cortava aquela placa de couro com tanta facilidade, que um dia pedi:

– Me deixa cortar? Ele riu:

– Tu não vai conseguir. Eu já era um rapagão, tinha passado dos 15 ou 16 anos, me achava uma fortaleza. Insisti:

– Deixa eu tentar. Ele estendeu a faquinha.

Não consegui nem sequer dar um talho no couro, quanto mais fazer como ele, que extirpava a sola com uma só mão, como se estivesse descascando uma laranja.

Que frustração. Vez em quando, meu avô abria a gaveta à sua frente, puxava de lá uns trocos e pedia:

– Vai lá no Marjan e busca uns baurus pra nós?

Eu sorria. Ele acrescentava: 

– Quantos tu quer? – Dois! – Pra mim um só, que não sou tão gordo.

Ia correndo. O Marjan fazia bauru com pão cervejinha bem novo, a casca crocante, o miolo fresco e quente como a primavera carioca. O bife não tinha gordura. Era temperado com alho, e tudo que é temperado com alho tem cheiro e sabor. Vinha dourado, vinha macio, via-se que não era carne congelada. O Marjan ainda acrescentava uma folha de alface e duas rodelas de tomate. E nada mais. Digno e sóbrio. Mas, às vezes, a nosso pedido, ele turbinava com um ovo frito, uma fatia de queijo num lado e outra de presunto no outro. Meu Deus! Era de comer entre suspiros e ais.

Agora, vivendo na terra dos lanches rápidos, tenho procurado algo que se assemelhe ao bauru do Marjan. Não encontro. Sim, admito, tenho provado hambúrgueres que me fazem refletir acerca de toda a bondade que pode ser engastada entre duas lascas de pão, mas não com o toque do bauru do Marjan, ah, não.

Por quê? Porque naquele bauru havia a malícia brasileira, essa malícia que não raro nos torna cínicos e às vezes inconfiáveis, mas que também nos faz encontrar soluções onde ninguém mais vê, que faz Ronaldinho descobrir uma fresta que não existia na zaga inimiga, que faz a mulher brasileira dar uma quebrada de cintura de um jeito que só ela tem, quando examina uma vitrine ou quando tão somente olha o dia passar.

Sendo assim, me diga: por que todas essas novas hamburguerias no Brasil? É a globalização irrefreável? Trump vociferou contra ela, e ganhou a eleição. Um sinal de alerta.

Nada de nacionalismos toscos, nada de xenofobia, mas cada um pode cultivar o que tem de bom. Bife de carne moída? Pão do tamanho de um punho? Tudo bem, não sou contra. Mas e o bauru? O que fizemos do bauru? Voltemos às raízes. Voltemos à sóbria dignidade do bauru do Marjan.