terça-feira, 22 de novembro de 2016



22 de novembro de 2016 | N° 18694 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

MISSÃO: ESCUTAR


Quantas vezes a chamada opinião pública – essa entidade de contornos rarefeitos mas realmente existente, que se encarna na imprensa, nas eleições, na escola, nas artes – deu a palavra aos de baixo e de fato os ouviu? Quantas vezes os levou a sério, como gente titular de direitos e capaz de expressão inteligente?

A expressão de gente pobre e de poucas letras entre nós é rara, com exceção de jogadores de futebol, tantas vezes meninos muito pobres que se deram bem graças a seu talento; mas, depois de confortáveis, o que eles dizem? Pensam sobre sua vida antiga e formulam uma interpretação ampla da experiência? Em nosso país são raríssimos os casos de gente que sai de posições muito precárias, ascende socialmente e depois escreve sobre o processo, mesclando na escrita o depoimento com a intepretação.

Por isso é tão precioso o livro Um preço muito alto – A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas, de Carl Hart (trad. Clóvis Marques, ed. Zahar). Li-o por recomendação do Mário Corso, e não paro de me surpreender com a força de sua história e com o imenso papel que um livro assim tem, aliás, teria que ter, entre nós.

Hart é um neurocientista com cara de artista pop, cabelo longo com dreads, e atuação de figura internacional. Nasceu em família pobre e complicada, quando jovem cometeu pequenos furtos para ganhar dinheiro extra enquanto mantinha emprego regular de salário mínimo, completou a escola e ingressou na universidade porque era um atleta futuroso, coisa que os compatriotas de Trump sabem fazer admiravelmente bem. Sim, teve experiência com drogas, e o que diz sobre elas, maduro, é esclarecedor e esvazia a maior parte das razões da repressão indiscriminada às drogas que nos está levando para o miolo do horror.

Hart veio de família desfeita e violenta, namorou a marginalidade mas sobreviveu, ascendeu e, mais importante, contou o que viveu, para exemplo e esclarecimento. Sua visão sobre o valor de aprender a língua mais sofisticada que a escola oferece é das coisas mais valiosas para nós, professores de língua e literatura. Contou e está sendo ouvido.

E os nossos meninos e jovens, quando é que damos chances a que escrevam para se expressar? Quando os ouvimos? Quando de fato pensamos neles como titulares de direitos realmente iguais para todos?