sábado, 26 de novembro de 2016



26 de novembro de 2016 | N° 18699 
CARPINEJAR

O QUÊ?

A velhice vem aos goles. Nunca se bebe o tempo num único sorvo.

A visão é a primeira a não corresponder inteiramente aos seus comandos. Você enxerga com dificuldade, mas não aceita e adivinha mais do que reconhece com rapidez. Assim tem os seus primeiros constrangimentos sociais. O neto exibe as fotos da visita ao zoológico e você comenta: “Que araras azuis bonitas!”.

E o neto retruca que não são araras, mas macacos. Você acabou de demonstrar que é um analfabeto ecológico para a nova geração da família.

Sua teimosia em deduzir no lugar de enxergar vai lhe colocando em situações incômodas, como a de embarcar no ônibus errado, estacionar em vagas de portadores de necessidades especiais ou de realizar perguntas óbvias.

Depois é a memória que fraqueja e rasteja com esforço. Começa a brincar do jogo da forca com as lembranças. O bonequinho recebe contornos a cada lapso e sempre termina com a cabeça a prêmio.

As palavras são apenas figuras. Ou seja, aparece a figura sem a palavra, o raciocínio é próprio de livro colorido para bebês.

O que lembrava instantaneamente custa a vir à tona. Sem wi-fi das ideias, retrocede à internet discada do pensamento. Esquece primeiro o nome das pessoas, os filhos são as cobaias prediletas. Troca os nomes dos guris, Pedro chama de Felipe, Felipe de Pedro e não acerta mais quem se aproxima. No início, dedica horas se explicando, argumenta que o filho confundido deve estar pensando em você, mas a recorrência faz com que perca a credibilidade.

Em seguida, erra o nome trocando o sexo dos filhos, Felipe chama de Gabriela, Gabriela chama de Pedro, a confusão está instalada. Resta rir e levar os acidentes de gênero na brincadeira.

A caduquice cobra os juros. O pior se avizinha. Após falhar o nome das pessoas e não conciliar rosto com legenda, passa a tropeçar na identificação dos objetos. Liquidificador chama de secador, micro-ondas de máquina de lavar, televisão de aspirador de pó, até se contentar com o genérico Coisa: – “Liga a coisa!”, “Alcança a coisa!”, “Onde está a coisa?”.

Por fim, apaga o nome das ruas, das praças, das cidades, do país, até se tornar um cidadão do mundo. Do outro lado do mundo.