domingo, 13 de novembro de 2016


12 de novembro de 2016 | N° 18685
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

ALGUÉM QUE OLHE POR NÓS

Entre pessoas aquinhoadas, a principal diferença entre viver e fazer de conta passa obrigatoriamente pela seleção do que priorizamos como ração vital. Os que se alimentam exclusivamente de bens materiais serão sempre pobres coitados, independentemente do quanto armazenem. E nada incomoda mais a esses ricos toscos do que descobrir que o patrimônio que nos diferencia como seres civilizados não se pode comprar.

Por essa razão, os que ultrapassaram a barreira mutilante da pobreza necessitam tanto da arte, porque todo o artista olha por nós. Não importa se por delicadeza verdadeira ou prometida, ele dá um jeito de amenizar a nossa vida das asperezas do cotidiano.

E qualquer artista merece reconhecimento porque lhe foi dada a graça de encantar e verter exultação por deslumbramento naqueles que se aproximam para sorver seu talento. No discurso que deveria ter proferido na cerimônia de outorga do Nobel de Literatura, Soljenítsin reconheceu que o artista precisa sempre ser valorizado por esta capacidade ímpar de extasiar, e que isto os torna superiores e especiais.

A escultura sempre foi a forma de arte que mais me encantou. Muitas vezes na vida me vi enlevado diante de uma obra mais ou menos famosa e me deslumbrei com o talento criativo de algum virtuose que conseguiu, retirando fragmentos de um bloco amorfo de pedra, deixar como produto final uma expressão dos sentimentos humanos mais nobres.

Impossível não se comover com o olhar enternecido de sofrimento de Maria no Pietá, uma soma de dor e perplexidade pela mutilação do filho amado, o que explica a frequente lágrima delatora da identidade materna em mulheres que deparam com o talento ímpar de Michelangelo, estacionado lá há séculos, à espera de corações generosos.

Na Galleria dell’Accademia, em Florença, os turistas distraídos percorrem o corredor a passo acelerado para contemplar a estátua de David no fundo do passeio, e como rotina ignoram os Prisioneiros de Michelangelo, que consistem em quatro peças aparentemente inacabadas que, juntas, representam o movimento de umas estátuas tentando se desvencilhar do mármore como expressão de calabouço. O esforço desesperado daqueles homens muito fortes, buscando libertar-se da rocha que os aprisiona, sempre me pareceu mais vívido e comovente do que o olhar enigmático do David.

No Museu Salvador Dalí, em Barcelona, há a estátua de um guerreiro, esculpida em ferro, em que se percebe no olhar toda a alegria e a soberba de quem venceu e voltou para os louros da conquista. Quanto talento é necessário para fazer uma barra de ferro “falar”?

Meu sentimento diante dessas genialidades repete invariavelmente o pasmo daquele menino que Galeano descreveu num dos seus contos geniais:

“Um escultor trabalhava num estúdio imenso, num bairro pobre, rodeado de crianças. Todas as crianças do bairro eram seus amigos. Um belo dia, a prefeitura encomendou-lhe um grande cavalo para uma praça da cidade. Um caminhão trouxe para o estúdio um bloco gigante de granito.

O escultor começou a trabalhá-lo, em cima de uma escada, a golpes de martelo e cinzel, enquanto a garotada observava. Então as crianças partiram de férias, rumo às montanhas ou ao mar. Quando regressaram o escultor mostrou-lhes o cavalo terminado. E um dos meninos, com os olhos muito abertos, perguntou:

– Mas... como você sabia que dentro daquela pedra havia um cavalo?”

A arte, em qualquer idade, tem a missão mágica de enternecer corações e romper a blindagem que tende a nos tornar menos suscetíveis às expressões prosaicas da inocência. Esta inocência que vai sendo dilapidada pela inevitável hipocrisia do convívio social, que nos força a reprimir o que sentimos em prol do ritual falacioso do politicamente correto. Quando percebemos, de tão simpáticos, perdemos a espontaneidade e nos tornamos rígidos como aqueles blocos amorfos, de onde precisaremos remover outra vez os fragmentos de pedra que nos embruteceram se quisermos recuperar o encanto de sermos sem preocupação com o que os outros achem que somos.