sexta-feira, 18 de novembro de 2016



18 de novembro de 2016 | N° 18691 
NÍLSON

MASSA DE TOMATE

Estive dia desses no supermercado que foi cinema, no centro de Porto Alegre. Era o Cacique, na sua época o cinema mais luxuoso da Capital. Agora é um Zaffari. Fiquei lendo, na parede preservada, a história resumida do prédio, onde também funcionou o cine Scala, ambos fechados em 1994, na onda de insegurança que acabou com os cinemas de rua em nossa cidade. Enquanto minhas acompanhantes faziam suas compras, procurei fazer o mesmo exercício de imaginação do escritor argentino Osvaldo Soriano, relatado por Eduardo Galeano, no seu Futebol a sol e sombra – um emocionante relato da visita ao supermercado de Buenos Aires que foi construído sobre o antigo campo do San Lorenzo de Almagro, hoje famoso por ser o clube da preferência do papa Francisco.

Pois Soriano foi ao súper na companhia de José Sanfilippo, ex-jogador e artilheiro do San Lorenzo por quatro temporadas seguidas. Lá pelas tantas, o velho Sanfilippo parou perto das caixas e exclamou em voz alta:

– E pensar que bem aqui meti um gol de bate-pronto no goleiro do Boca...

Para espanto dos funcionários e clientes do supermercado, ele começou a narrar o lance, lembrando que recebeu a bola nas proximidades da pilha de vidros de maionese, atropelou os zagueiros, esperou o pique e meteu de pé esquerdo na direção da caixa onde três décadas atrás era o gol. Todos se viraram para o lado em que ele apontou o ângulo onde a bola entrou, e o veterano craque ergueu os braços para festejar. O supermercado inteiro aplaudiu, conta Soriano, arrematando:

– Sanfilippo tinha feito de novo aquele gol de 1962 para que eu pudes­­se vê-lo.

Esse lindo relato me inspirou. Olhei para o fundo do supermercado, por entre as estantes repletas de mercadorias, fechei os olhos e revi a tela luminosa com um bangue-bangue da minha infância. Minha imaginação escureceu a iluminação projetada para atrair a atenção dos fregueses, e o lanterninha passou, silencioso, apontando as poltronas vazias para os espectadores retardatários e provocando indignação nos casais de namorados que, obviamente, não estavam lá para ver o filme. Lembrei, então, que nos bangue-bangues de antigamente os revólveres tinham cargas intermináveis de balas, e o sangue era de massa de tomate.

Abri os olhos e deparei, sem graça, com uma estante repleta de latinhas vermelhas. The end.