sábado, 31 de março de 2018



31 DE MARÇO DE 2018
JJ CAMARGO


QUANDO A DISCRIMINAÇÃO MACHUCA

Georgina tinha 76 anos quando foi internada com derrame pleural, e os exames confirmaram a disseminação de um câncer de rim que tinha operado cinco anos antes.

Esse achado significava que houvera disseminação do tumor por via sanguínea e que nenhum tratamento local, como cirurgia ou radioterapia, poderia ajudar. No final dos anos 1990, o tumor de rim estava sempre no topo da lista dos cânceres que não respondiam à quimioterapia. Não tínhamos como saber se ela sabia disso, mas havia uma resignação e uma tristeza no olhar que sugeriam que sim.

Convivi com Georgina durante quase um ano e, nesse tempo, nunca ouvi uma queixa que fosse. Tinha trabalhado a vida toda como cozinheira em um hotel de luxo e não escondia o orgulho ao citar a lista de famosos que tinha alimentado. Sempre terminava relembrando a surpresa ao ser interrompida na cozinha pelo empresário Antônio Ermírio de Moraes, que não resistira a cumprimentá-la "porque nunca tinha comido um risoto tão gostoso".

E aí seguia explicando como fazia para dar o sabor com tomate seco e, no final, o queijo ralado para gratinar. Havia tanto orgulho em cada relato que se poderia supor que a culinária era a marca definitiva, e única, da sua vida modesta.

Mas ela tinha um trunfo guardado a muitas chaves: um filho, que conseguira formar com imenso sacrifício e que agora era engenheiro-chefe de plataforma na Petrobras em Campos. Fiquei muito surpreso com a existência dele, porque ela era a imagem da solidão e, com exceção de uma prima que aparecia a cada duas semanas, nunca se comentou de nenhuma visita.

Só soube da existência desse filho quando surgiu um porta-retrato na mesa de cabeceira, justo naquela fase triste em que os cuidados paliativos apontavam para o fim, a falta de ar se tornara insuportável, e o aumento da oferta de oxigênio, inútil.

"Não quero que meu filho me veja morrer. Ele que fique com a lembrança do tempo em que eu tinha saúde, para ser a mãe e o pai, que ele nunca conheceu. Eu só tinha 17 anos, e o senhor nem imagina o quanto era lindo meu alemão!"

Quando ensaiei o discurso do quanto era injusto privar um filho do convívio final com a sua mãe, ela me interrompeu: "Não é nada disso, doutor, ele não viria de qualquer jeito!".

"Mas por que não?"

"Ah, doutor, ele sempre me escondeu. No início, isso me magoou muito, mas depois aceitei, e acabei achando que ele tinha razão: não ajudaria nada um branquelo bonitão como ele ter uma mãe negra como eu!"
JJ CAMARGO